Histórico e breve análise do paganismo germânico nos tempos atuais
É muito comum novos (e até não tão novos assim) praticantes do paganismo germânico ou escandinavo se verem confusos com os diversos termos que são usados para definir essa religião. Ásatrú, Odinismo, tribalismo heathen, reconstrucionismo, Forn Siðr, Theodismo e até bizarrices obscuras como Wanen são vertentes fáceis de se encontrar na internet. Na ânsia de se definir como seguidor dos deuses germânicos, é normal ao novato se autodenominar seguidor de uma dessas vertentes, normalmente Ásatrú, sem de fato saber o que ela significa. O próprio autor que vos escreve, nos idos anos de 2008, também passou por essa fase ao se denominar um Ásatrú (e convenhamos que o Fé nos Aesires é uma frase bem legal).
O problema é que muitas pessoas acabam não se aprofundando em cada uma dessas vertentes, deixando de aproveitar o que cada uma delas possa ter de bom e até mesmo ignorando questões negativas que algumas delas carregam. Pensando em ajudar quem está interessado em entender melhor as vertentes do paganismo germânico, redigi este texto para servir como um guia inicial nessa jornada.
Neopaganismo
Primeiramente precisamos pontuar uma questão de suma importância para esta discussão: toda e qualquer prática religiosa moderna do paganismo germânico ou escandinavo (bem como qualquer paganismo europeu anterior à cristianização) é neopaganismo. Isso significa que não vivemos na idade antiga ou média, não somos vikings ou guerreiros saxões e a grande maioria de nós vive em cidades. A era pagã da antiga Europa acabou há cerca de mil anos. O que praticamos é uma tentativa de reavivamento do que esses povos antigos praticavam, adaptados ao mundo moderno.
É na preocupação com a fidelidade do resgate desses conceitos antigos que implica a primeira grande divisão das vertentes neopagãs: existem vertentes menos fiéis aos conceitos antigos e que muitas vezes agregam conceitos mais modernos e a estas chamaremos de sincréticas; e por fim existem as vertentes que procuram reconstruir a visão de mundo que esses povos tinham. A essas vertentes chamaremos de reconstrucionistas.
A seguir vamos listar e falar brevemente sobre cada vertente dentro das divisões que acabamos de traçar, verificando tanto o cenário internacional quanto o brasileiro.
Neopaganismo Sincrético
As vertentes da qual classifico como neopagãs sincréticas tem como características comuns o fato de terem sido fortemente influenciadas pelo romantismo (no nosso caso o romantismo alemão do século XIX) e pelas correntes de contracultura e da Wicca nos anos 60. Outra questão importante de se citar é que essas vertentes entendem as Eddas de Snorri, o Codex Regius (Edda Poética) e outras fontes similares em uma interpretação literal, ignorando a influência cristã presente nelas. Portanto entendemos que as religiões que se enquadram nessas características são versões baseadas no entendimento moderno dos antigos deuses e mitos, sem grandes preocupações em reproduzir o rito religioso antigo.
- Associação Ásatrú (Ásatrúarfélag)
Foi fundada na Islândia por Sveinbjörn Beinteinsson, um fazendeiro, escaldo (poeta) e estudioso islandês, no Primeiro Dia do Verão de 1972, que inicialmente tinha 12 membros, tendo conseguido o reconhecimento como organização religiosa registrada em 1973. A Ásatrú é uma religião oficialmente reconhecida pelos governos da Islândia (desde 1973), Dinamarca (desde 2003) e Noruega. Ela foi a primeira organização a usar a expressão "Ásatrú" para o reavivamento religioso das tradições islandesas. Beinteinsson serviu como Allsherjargoði (sumo sacerdote) até sua morte em 1993.
A Associação Ásatrú tem grande importância dentro do nosso cenário já que foi a primeira a ser reconhecida como uma religião formal, fato que contribui fortemente para que a prática da religião pagã germânica seja levada a sério. Outro ponto importante de se observar é que a Ásatrú é aberta para todos, independente de cor e nacionalidade, desde que estes residam nos países onde ela está estabelecida. Como pioneira, este é um fato muito importante de ser levado como referência.
A despeito das questões positivas supracitadas, é importante entender que a Associação Ásatrú pratica uma visão moderna e fortemente influenciada pela Wicca. Esse é um ponto fruto de muitas críticas principalmente dentro do movimento reconstrucionista. Essa questão fica clara ao observarmos uma afirmação do atual sumo sacerdote da Ásatrú, Hilmar Örn Hilmarsson, que disse:
Eu já disse que eu não acredito em um homem de um olho só, montando um cavalo de oito patas, e alguns consideram isso blasfêmia. Há sempre pessoas que querem coisas para serem gravadas em pedras. Mas a Edda Poética é fundamentalmente sobre como a vida muda, e como você deve estar preparado para responder às mudanças que ela traz. [1]
Além disso, para nós brasileiros residentes no Brasil, não existe a possibilidade de pertencermos a Associação Ásatrú, visto que é necessário residir nos países onde a mesma está estabelecida.
- AFA - Asatru Folk Assembly
A Asatru Folk Assembly (AFA) é uma organização internacional Ásatrú, fundada por Stephen A. McNallen em 1994. Suas doutrinas são baseadas na etnia, uma abordagem que chama de "folkish". Com sede em Grass Valley, Califórnia, com capítulos em todo o mundo.
A AFA tem suas bases ideológicas fundamentadas no seu fundador, McNallen, que teve fortes influências da Wicca de Gerald Gardner e na já citada Associação Ásatrú. Além disso, como pode ser observado, a AFA tem forte caráter racialista e xenofóbico, já que apenas são aceitos como membros pessoas de clara ascendência européia. Não faz sentido qualquer brasileiro participar deste tipo de grupo e nós do Germania Institut condenamos fortemente esse tipo de pensamento.
- Odinismo
Diversos movimentos existiram e ainda existem onde a fé é centralizada na figura do deus Odin em uma concepção mais do que a de um líder de panteão, quase como um monoteísmo. Destes podemos citar a Irmandade Odinista do Sagrado Fogo, a Odinist Fellowship e a Odinic Rite como principais representantes.
Foi dentro da Odinic Rite que surgiram as famigeradas Nove Nobres Virtudes. Estas foram criadas por, dentre outros, sir Oswald Mosley. O problema desses “códigos de éticas” são:
Não possuem qualquer embasamento histórico, pois não existiam tais conceitos para os antigos povos germânicos e foram criadas com base na interpretação dos autores;
Da mesma forma que o Odinismo substitui a figura do deus cristão por Odin, as Nove Nobres Virtudes aparentam uma carência dos 10 mandamentos bíblicos;
Um dos criadores, Mosley, foi o principal representante político do Fascismo na Inglaterra.
- Asatru no Brasil
Apesar de nenhuma das organizações existirem oficialmente, pelo menos até o momento, no Brasil, temos diversos grupos ou indivíduos que se identificam como Ásatrú ou Ásatrú Vanatrú. Como o termo Ásatrú extrapolou o que são essas organizações, é comum quem está começando a se interessar pela religião germânica (principalmente o secto nórdico) se identifique desta forma. Como citado no início do texto, eu mesmo passei por essa fase.
O bônus de não carregar a estrutura e todo o arcabouço ideológico que as Ásatru oficiais possuem, é que o problema das respectivas organizações também ficam (ou deveriam) de fora. Logo qualquer pessoa pode se identificar livremente como um Asatruar (seguidor da Ásatrú) residindo em qualquer lugar e tendo qualquer etnia.
Já o que acaba sendo negativo é o fato de que esses praticantes normalmente não vão a fundo do que significa adotar uma religião germânica. Substituem rapidamente a figura do Deus Cristão por Odin, os dez mandamentos bíblicos pelas nove nobre virtudes, Jesus por Thor, o Éden por Valhalla, o crucifixo pelo Mjölnir e assim por diante. Quando não acabam até mesmo cultuando divindades que jamais foram cultuadas pelos antigos germânicos, como por exemplo Loki ou os Jotnar (os famosos gigantes no plural do termo nórdico Jotun).
Naturalmente muito disso é apenas uma fase. Um exemplo famoso disso aconteceu com um famoso portal brasileiro que se chamava Asatru e Liberdade e, com o tempo e com o amadurecimento do que era a religião antiga, mudou o nome para Heathenry e Liberdade.
Existem também grupos e indivíduos (dos quais não vamos citar para evitar maiores problemas) que usam da boa vontade das pessoas que querem adotar essa religião para criar vertentes onde eles são os especialistas e “donos da verdade”. Identificam-se como escolhidos dos deuses e, assim, verdadeiros intermediários deste na terra, Völvas conhecedoras do verdadeiro segredo da Seidr (historicamente não a qualquer registro de como essas práticas eram feitas), até mesmo mestres das runas com um conhecimento antigo do verdadeiro método divinatório usado antigamente (o uso oracular de runas começou por volta da década de 40) ou conhecedores do verdadeiro paganismo da tribo dos Vanires que apenas uma senhora alemã conhecia (os alemães no tempo de pagãos desconheciam a tribo Vanir, sendo esta apenas cultuada pelos nórdicos). Felizmente existem grupos e canais bem intencionados que ajudam as pessoas a não serem vítimas desses charlatões.
Neopaganismo Reconstrucionista
O neopaganismo reconstrucionista germânico ou etenismo/etenaria (do inglês heathenism, heathenry) é a reconstrução da antiga religião praticada durante séculos pelos germânicos, referente a todos os povos de sua origem.
O termo Heathen é a forma com que os anglo-saxões se referiam especificamente aos pagãos germânicos (principalmente escandinavos), e tem um significado idêntico ao termo pagão. Ambos são usados de acordo com a preferência de cada um.
O processo de reconstrução compreende o entendimento dos rituais religiosos, das questões antropológicas, do estudo minucioso das fontes antigas e da mitologia dos povos germânicos. Enquanto a ênfase no rigor histórico pode implicar uma recriação histórica, o desejo de continuidade nas tradições rituais (ortopraxia) é uma característica comum da dos praticantes dessa vertente da religião.
Na visão reconstrucionista é entendido que a sociedade ocidental tem forte influência cristã e não faz sentido usar a nossa visão de mundo para interpretar símbolos e conceitos tão antigos. Usar a moral, ética e visão de mundo cristã para interpretar a religião germânica incute nos problemas dos quais já citamos, ou seja, a mera substituição de símbolos. Para entender o porquê Odin era o deus da magia, o porquê Thor tinha que matar a serpente ou o porquê comemorar as noites de inverno (Yule) só vai fazer sentido entendendo como as pessoas que faziam isso no passado enxergavam o universo. Desta forma a prática reconstrucionista vai além do fato religioso, mas segue também a para questão de moral, de ética e de sociedade.
Esse rigor histórico não implica em os participantes serem cosplays de guerreiros saxões, navegadores que saiam em uma viking ou mulheres que faziam o papel de Völva. Entendemos que vivemos em uma outra época e que precisamos ressignificar algumas coisas com base em fatos sociais modernos.
Entretanto, como ponto negativo, existem em alguns meios uma resistência ou até mesmo uma negação em relação a assuntos que não faziam parte da prática religiosa antiga, como por exemplo o uso oracular de runas (prática moderna e sem comprovação histórica de que era conhecida pelos antigos germânicos).
Outra questão importante de se evidenciar dentro do neopaganismo reconstrucionista germânico, é o tribalismo ou heathenry tribal. Todo grupo ou indivíduo que segue essa vertente entende que a base da religião germânica era estruturada em forma de tribo, pois eram assim que estes povos viviam e se organizavam. Essa questão é de suma importância, pois reflete em conceitos elementares como Frith, Innangard / Utangard, sorte e destino.
A seguir vamos listar e falar brevemente sobre cada vertente dentro das divisões que acabamos de traçar, verificando tanto o cenário internacional quanto o brasileiro.
- Forn Siðr - O Antigo Costume Escandinavo
O Forn Siðr é um termo em nórdico antigo que significa "antigo costume". Seu objetivo é recuperar a religião vivenciada na Escandinávia e Islândia antes da conversão ao cristianismo. Geralmente seus praticantes se voltam à Era Viking. Existe inclusive um grupo que representa essa vertente chamada Associação Forn Siðr na Dinamarca.
- Aldsidu - O Antigo Paganismo Saxão
Tal qual o Forn Sir dos escandinavos. Existe a vertente que segue a visão religiosa focada nos povos germânicos continentais, principalmente nos antigos saxões. Um ponto interessante do paganismo continental é que ele é muito mais antigo que o escandinavo e muito mais próximo da origem proto-indo européia, portanto, muito menos contaminado com a influência cristã. Um dos principais representantes hoje desta prática é o Robert Sass e seu grupo / blog Aldsidu (Old Saxon Heathenry). Esta é a linha de estudo e prática seguida por nós do Germania Institut.
- Fyrnsidu, Forn Sed e Frankisk Aldsido
Estas outras vertentes são as variações reconstrucionistas anglo-saxã, sueca e da tribo germânica dos francos respectivamente. Elas seguem as particularidades religiosas inerentes a cada um desses povos germânicos. Existem outras linhas específicas de outros povos germânicos além destas, porém estamos citando as mais famosas.
- Theodismo
O theodismo, ou Þéodisc Geléafa ("crença tribal") é uma variante norte-americana do neopaganismo germânico que busca reconstruir as crenças e práticas de várias tribos históricas do norte da Europa. Inicialmente, o theodismo se referia unicamente ao politeísmo anglo-saxão, a religião dos anglo-saxões que se estabeleceram na Inglaterra. Agora, no entanto, o termo theodismo abrange normando, anglo, saxão continental, frísio, juto, godo, alemânico, sueco, danês e outras variantes tribais. Þéodisc é o adjetivo de þéod "povo, tribo", cognato Deutsch (etnônimo para os alemães) e Dutch (etnônimo inglês para os holandeses).
- Autores independentes
É importante citar que temos importantes referências internacionais dentro do reconstrucionismo e que fazem um excelente trabalho em diversas categorias pertencentes a essa vertente, como religião, história ou mitologia. Dentre esses podemos citar o Ph.D. em Linguística Germânica professor Scott T. Shell, o professor Jackson W. Crawford e o bacharel em história e arqueologia Arith Härger.
- Reconstrucionismo Germânico no Brasil
Como o movimento religioso neopagão germânico é relativamente recente no Brasil, ainda não existem numerosos grupos como no caso da vertente sincrética. Temos também grupos sincréticos que estão em processo de adoção de uma visão reconstrucionista, mas temos alguns bons representantes desse movimento aqui nas terras tupiniquins. Vamos citar alguns bons exemplos dos que seguem e propagam o reconstrucionismo no nosso país:
NEVE: Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos
O NEVE é um grupo de estudos e pesquisas da História da Era Viking e divulgações em Escandinavística. É liderado pelo professor doutor Johnni Langer do qual é autor de importantes obras em português brasileiro como, por exemplo, o Dicionário de Mitologia Nórdica e o Dicionário de História e Cultura da Era Viking. Apesar do grupo em si ser apenas acadêmico e não seguir de fato a religião, eles são uma prolífica e importante fonte de informações históricas para os praticantes do reconstrucionismo religioso germânico.
Allan P. Marante
Allan P. Marante é autor, tradutor de nórdico antigo e fundador e dirigente do Projeto Cultural Caminho Nórdico. Autor dos livros "Paganismo Nórdico no Século XII", "Hávamál: As palavras de sabedoria de Óðinn", "Ynglinga Saga: A História dos Deuses e Reis Nórdicos" e "História Rúnica: A literatura, arqueologia e sabedoria das Runas". Tem seu trabalho pautado no estudo linguístico e arqueológico da religião nórdica e serve de importante referência em português nestes assuntos.
Germania Institut
Provavelmente quem está lendo este artigo já conhece nosso trabalho, mas seria um erro não nos auto referenciarmos, pois desde 2019 temos feito um importante trabalho na divulgação da visão reconstrucionista da religião germânica com foco na vertente continental saxã. O grupo (no momento em que escrevo este artigo) é formado por cinco autores e divulga seus estudos por meio de blog e redes sociais. O Germania Institut terá participação em palestras no Dia do Orgulho Pagão, além de promover importante trabalho social aos interessados por essa religião através de grupos no WhatsApp. Apesar da parte literária, o Germania Institut é a versão pública do Kindred Gralhas do Sul e que promove blóts e sumbles presenciais e públicos com seus participantes.
1 - «Heathens contra o ódio: Entrevista exclusiva com o Sumo Sacerdote da Associação Pagã Islandesa». Ásatrú & Liberdade. 17 de agosto de 2015. Consultado em 09 de outubro de 2022
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