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A Imersão de Recém-Nascidos em Água Fria: Um ritual religioso germânico pré-cristão transmitido por autores gregos?


Dentro da religião cristã, o batismo tem uma função importante para o fiel e para a própria religião. Portanto, muitas pessoas acabam perguntando se existe alguma coisa parecida quando tratamos, não só da religiosidade germânica, mas de outras religiões pré-cristãs. Tendo isso em vista, vamos analisar a ideia, buscando encontrar uma resposta para esse questionamento.

O costume de mergulhar recém-nascidos em água fria entre povos germânicos é mencionado por dois autores gregos: Galeno de Pérgamo e Sorano de Éfeso. A partir dessas referências, pesquisadores modernos levantaram a hipótese de um antigo ritual de consagração pela água, denominado Wasserweihe (“consagração aquática”), que teria precedido o batismo cristão e, ao mesmo tempo, conferido ao infante um estatuto jurídico e social.

Essa hipótese, interessantíssima, coloca em diálogo três níveis distintos de tradição: o testemunho clássico greco-romano, a reelaboração literária nórdica e a recepção moderna por filólogos e historiadores das religiões germânicas. O objetivo desta análise é reconstituir criticamente o debate, seguindo a estrutura e as fontes apresentadas por Sabine Heidi Walther (2021), mas também avaliar o alcance interpretativo das fontes.

Walther recorda que Konrad Maurer foi quem sistematizou o tema no século XIX em sua monografia Wasserweihe (1881). Ele combinava dois elementos principais: (a) a observação, derivada de códigos legais medievais, de que o direito à herança dependia do batismo; e (b) a suposição de um costume pagão de “consagração pela água”, após o qual o pai já não poderia abandonar o bebê (Walther, 2021, p. 632).

É possível observar que esse raciocínio reflete uma lógica historicista típica do século XIX: a busca de origens pré-cristãs para instituições jurídicas cristianizadas. O gesto de aspergir água seria, para Maurer, a marca liminar que separava o não-ser social do ser-pessoa.

Jacob Grimm, em seu Deutsche Rechtsalterthümer (1854, p. 457), já havia citado uma passagem de saga:

“…era considerado assassinato abandonar uma criança depois de ela ter sido aspergida com água (vatni ausin).”

Essa evidência levou Maurer a tratar o ritual como um ato jurídico-religioso, uma fronteira entre a natureza e a cultura.

Walther recorda ainda que Anders Hultgård propôs distinguir entre o rito pré-cristão ausa vatni e o batismo cristão skíra. Ele chegou a sugerir que o primeiro funcionava quase como um terminus technicus para um rito não cristão. Para Hultgård, embora não existam descrições completas da cerimônia, seu significado seria o de um “rito de purificação” ou um rito de passagem.

De Vries, por sua vez, considerou o ausa vatni uma espécie de “batismo pagão” (heidnische Taufe). Já Maurer via nele um rito genuinamente pré-cristão, ainda que inspirado no batismo. Rudolf Simek, segundo Hultgård, preferiu interpretá-lo como uma projeção retrospectiva feita por autores cristãos de sagas; ou seja, um artifício literário, não uma prática real.

Veja que essa divergência é central: De Vries e Maurer acreditam na realidade histórica do rito; Simek e Walther tendem a vê-lo como construção narrativa. O debate, portanto, não é apenas religioso, mas epistemológico[1]. Discute-se o estatuto mesmo da evidência filológica.

Se o ritual de fato existiu, ele poderia depender do batismo cristão por aculturação ou ter se desenvolvido antes do contato com o cristianismo. Hultgård, ainda que reconheça a falta de provas definitivas, inclina-se pela segunda hipótese. Ele baseia-se em dois argumentos: a forma do gesto (“derramar ou aspergir água”) e a própria terminologia, que parecem indicar um rito independente; e certas passagens poéticas que reforçariam essa leitura.

Nesse ponto, é interessante observar como o vocabulário (ausa vatni, skíra, døpa) carrega camadas semânticas distintas. Hultgård observa que ausa vatni (“aspergir com água”) era usado para um ritual pagão, enquanto skíra e døpa designavam o batismo cristão. O islandês dypa/deyfa vem do inglês antigo dyppan e do alto-alemão antigo toufen (“mergulhar”). Assim, ausa vatni corresponderia à aspersio, e skíra à immersio ou submersio.

Essa distinção é relevante porque antecipa, de certo modo, as controvérsias teológicas medievais sobre a forma válida do batismo: imersão ou aspersão. O fato de autores islandeses cristãos preferirem ausa vatni para descrever antepassados pagãos talvez indique apenas uma escolha estilística, e não a lembrança de um rito autêntico.

 

O uso de ausa vatni nas fontes nórdicas

Quando analisamos as ocorrências de ausa vatni na literatura islandesa medieval, percebemos que elas se concentram em contextos de nomeação de crianças, nunca com menção explícita a um caráter pagão. O termo aparece quase sempre de modo formulaico, o que indica tradição literária, não rito religioso.

Por exemplo, há três passagens paradigmáticas preservadas no Dictionary of Old Norse Prose:

Óláfs saga Tryggvasonar:
 konungr ios suein þaɴ uatni ok gaf nafn ok kallaði Knut af knuti þeim er barnit hafði með ser.
 “O rei aspergiu a criança com água, deu-lhe um nome e chamou-a Knut, em homenagem ao nó que a havia prendido a ele.”

Eyrbyggja saga:
 fœddi Þóra sveinbarn, ok var Grímr nefndr, er vatni var ausinn.
 “Þóra deu à luz um menino, e ele foi chamado Grímr, depois de ter sido aspergido com água.”

Heimskringla:
 Eirikr ok Gunnhildr áttu son, er Haraldr konungr jós vatni ok gaf nafn sitt.
 “Eirikr e Gunnhildr tiveram um filho; o rei Haraldr aspergiu-o com água e deu-lhe o próprio nome.”

Essas passagens ilustram que o ato de aspergir água se associa invariavelmente ao dar nome, um gesto social de acolhimento, e não à iniciação religiosa. Quando analisamos estes trechos e ainda, sendo as sagas compostas por escritores cristãos que procuravam inserir seus antepassados em uma genealogia cristianizada, o emprego de ausa vatni pode representar mais um artifício literário do que memória de um rito autônomo.

Walther destaca ainda que o verbo skíra (“batizar”) já era o termo comum nas fontes islandesas desde os primeiros manuscritos (c. 1150). Portanto, utilizar ausa vatni para tempos pagãos e skíra para cristãos pode simplesmente expressar o contraste entre passado e presente. Esse paralelismo retórico é típico de sociedades recém-cristianizadas: há necessidade de diferenciar o “antes” e o “depois” sem negar completamente a continuidade cultural[2].

O testemunho dos poemas eddicos

Passamos agora a analisar duas fontes poéticas que Hultgård considerava fundamentais: o Hávamál (estrofe 158) e a Rígsþula. No Hávamál, a expressão verpa vatni á (“lançar água sobre”) aparece na seguinte estrofe:

Hávamál 158
 Þat kann ek þrettánda,
 ef ek skal þegn ungan
 verpa vatni á,
 munat hann falla,
 þótt hann í fólk komi,
 hnígra sá halr fyr hjǫrum.

“Eu sei o décimo terceiro canto:
 se eu lançar água sobre um jovem guerreiro,
 ele não cairá,
 mesmo que vá à batalha;
 ele não tombará sob as espadas.”

É possível imaginar que o contexto aqui é apotropaico, isto é, trata-se de um encantamento de proteção. O sujeito do rito é um jovem adulto, não um bebê, e o propósito é preservar-lhe a vida no combate.  O gesto à aspersão de água benta usada nas liturgias cristãs pode ser comparado ao anterior:

Asperges me hyssopo et mundabor; lavabis me et super nivem dealbabor
 (“Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e ficarei mais branco do que a neve” — Salmo 51:7).

O Hávamál 158 não descreve um batismo ou consagração, mas um rito de bênção e purificação. O paralelismo com o asperges me latino demonstra que o simbolismo da água atravessa religiões distintas, sem se restringir a um único contexto teológico.

Além disso, a datação do Hávamál é incerta — De Vries o considerava do século X, mas o único manuscrito completo é o Codex Regius (c. 1270). Assim, qualquer uso da passagem como “prova” de um ritual pagão seria especulativo. Essa prudência é metodologicamente correta: interpretar textos transmitidos por copistas cristãos exige consciência de que a transmissão é sempre já uma leitura.

Já a Rígsþula menciona ausa vatni três vezes, sempre no mesmo contexto: um recém-nascido é aspergido com água enquanto recebe um nome. Walther (2021, p. 636) enfatiza que o poema é preservado no Codex Wormianus (c. 1350), e todas as cópias posteriores dependem dele. Isso confirma que se trata de uma fonte cristã tardia, não um testemunho direto de práticas pagãs.

Tudo isso acaba fazendo com que essa constatação desmonte a base empírica da hipótese de Maurer. Se as únicas ocorrências documentadas provêm de textos redigidos séculos depois da cristianização, o rito pagão torna-se uma construção retrospectiva — uma espécie de “memória inventada” destinada a preencher lacunas entre o mito e a liturgia.

Ao sintetizar essas evidências, conclui-se que ausa vatni nas sagas e na Rígsþula refere-se a batismo e nomeação, não a um ritual pagão. “Temos escritores cristãos escrevendo sobre seus ancestrais, e nada nas fontes comprova a existência de um ritual pré-cristão” (Walther, 2021, p. 636). Para mim, isso mostra como a fronteira entre religião e literatura é porosa: o gesto simbólico da água funciona como marcador de identidade cultural, não como vestígio etnográfico.


As fontes gregas: Galeno e Sorano

Depois de examinar as fontes nórdicas, voltemos às fontes clássicas gregas, muito anteriores às sagas islandesas. É nelas que se encontram os primeiros testemunhos do costume de mergulhar recém-nascidos em água fria, especialmente em Galeno de Pérgamo (129 – c. 216 d.C.) e Sorano de Éfeso (ativo por volta de 100 d.C.).

A leitura comparada desses dois médicos é fundamental, pois Galeno depende explicitamente de Sorano, ampliando sua descrição com interpretações morais e fisiológicas. Estes trechos a seguir buscam confirmar como o gesto de “banhar o recém-nascido em água fria” foi, na Antiguidade, compreendido no campo da medicina e da higiene, não no da religião.

 

Galeno de Pérgamo: higiene e prova de resistência

Em sua obra Ὑγιεινά (De sanitate tuenda), Galeno discute a criação das crianças e o valor dos banhos para a saúde. No capítulo I.10 ele escreve:

Texto original (gr.)
 παρὰ μὲν γε τοῖς Γερμανοῖς οὐ καλῶς τρέφεται τὰ παιδία·
 τίς γὰρ ἂν ὑπομείνειε τῶν παρ’ ἡμῖν ἀνθρώπων εὐθὺς ἅμα τῷ γεννηθῆναι τὸ βρέφος ἔτι θερμὸν ἐπὶ τὰ τῶν ποταμῶν φέρειν ῥεύματα, κἀνταῦθα, καθάπερ φασὶ τοὺς Γερμανούς, ἅμα τε πεῖραν αὐτοῦ ποιεῖσθαι τῆς φύσεως ἅμα τε κρατύνειν τὰ σώματα, βάπτοντας εἰς τὸ ψυχρὸν ὕδωρ ὥσπερ τὸν διάπυρον σίδηρον;

Tradução:
 “Entre os Germanos, as crianças não são bem cuidadas. Pois quem, entre nós, suportaria levar o recém-nascido, ainda quente do parto, às correntes dos rios e ali — como dizem que fazem os Germanos — testá-lo em sua natureza e fortalecer-lhe o corpo, mergulhando-o na água fria como ferro incandescente?”

O contraste civilizatório que Galeno estabelece é intrigante: “nós”, os gregos racionais, versus “eles”, os bárbaros. O médico equipara o costume a um tratamento de choque térmico, útil talvez para o ferro, mas cruel para um ser humano. Vale acrescentar que Galeno emprega o verbo βαπτεῖν (“mergulhar”), de onde viria baptizein. Contudo, aqui o termo é puramente físico, sem conotação ritual.

Em seguida, Galeno explicita a lógica médica:

Texto original (gr.)
 ὅτι μὲν γάρ, ἐὰν ὑπομείνῃ τε καὶ μὴ βλαβῇ, καὶ τὴν ἐκ τῆς οἰκείας φύσεως ἐπεδείξατο ῥώμην καὶ τὴν ἐκ τῆς πρὸς τὸ ψυχρὸν ὁμιλίας ἐπεκτήσατο· ὅτι δ’, εἰ νικηθείη πρὸς τῆς ἔξωθεν ψύξεως ἡ ἔμφυτος αὐτοῦ θερμότης, ἀναγκαῖον αὐτίκα τεθνάναι.

Tradução:
 “Se o bebê resiste e não sofre dano, demonstra a força de sua natureza e adquire resistência pelo contato com o frio; mas, se o frio externo vence seu calor inato, é inevitável que morra imediatamente.”

Walther observa que o raciocínio segue a teoria hipocrática dos quatro humores: a saúde depende do equilíbrio entre o quente e o frio. O mergulho seria um experimento sobre essa natureza (πεῖραν τῆς φύσεως ποιεῖσθαι), não uma consagração espiritual. É possível perceber que Galeno transforma o gesto em teste fisiológico: a criança “aprovada” é forte; a “reprovada” morre. Trata-se de eugenia empírica, não de ritual religioso.

Ele conclui ironizando:

Texto original (gr.)
 τίς οὖν ἂν ἕλοιτο νοῦν ἔχων ἐν ᾗ θάνατός ἐστιν ἡ ἀποτυχία; ὄνῳ μὲν γὰρ ἴσως ἀγαθὸν ἂν εἴη· ἀνθρώπῳ δέ, λογικῷ ζῴῳ, οὔ.

Tradução:
 “Quem, em plena razão, escolheria uma prova em que o fracasso é a morte? Talvez seja bom para um asno, mas não para um ser humano racional.”

Esse sarcasmo mostra o tom moralizante do texto: Galeno não descreve um rito, mas condena um costume bárbaro. Como nota Walther (2021, p. 637), “a passagem é etnográfica e ética, não religiosa”.

Sorano de Éfeso: higiene e eugenia

Cerca de uma geração antes de Galeno, Sorano de Éfeso, em Περὶ γυναικείων παθῶν (De morbis mulierum), tratara do mesmo assunto. Ele escreve:

Texto original (gr.)
 Μετὰ δὲ τὴν ὀμφαλοτομίαν οἱ πολλοὶ τῶν βαρβάρων, ὡς οἱ Γερμανοὶ καὶ Σκύθαι, τινὲς δὲ καὶ τῶν Ἑλλήνων, εἰς ψυχρὸν ὕδωρ καθιᾶσι τὸ βρέφος στερεοποιήσεως χάριν· τὸ δὲ μὴ φέρον τὴν ψύξιν, ἀλλὰ πελιούμενον ἢ σπώμενον, ὡς οὐκ ἄξιον ἐκτροφῆς ὂν, ἀπολέσθαι.

Tradução:
 “Depois de cortar o cordão umbilical, a maioria dos bárbaros — como os Germanos e os Citas — e até mesmo alguns gregos, colocam o recém-nascido em água fria para fortalecê-lo e deixam morrer, como indigno de criação, aquele que não suporta o frio e se torna lívido ou convulsivo.”

Sorano apresenta o costume como prova seletiva, uma forma primitiva de eugenia: o bebê que resiste merece viver; o que sucumbe é descartado. O autor critica essa prática como típica dos bárbaros e enumera outras igualmente condenáveis — lavar o bebê em vinho, urina ou decocção de mirto.

Sorano inaugura uma tradição descritiva na qual o ato de mergulhar o recém-nascido se torna sinônimo de crueldade bárbara. Quando Galeno retoma o exemplo, ele o veste de aparato teórico, mas mantém a intenção moralizante. Portanto, ambos falam de higiene e de educação física; nenhum menciona sacralidade.

Walther conclui que as fontes gregas não comprovam qualquer “ritual de consagração”, mas apenas um costume de prova física. E acrescenta que “o paralelo com o ausa vatni das sagas é meramente superficial: um compartilha a água como elemento, não a função simbólica” (Walther, 2021, p. 639).A coincidência lexical (baptizein, ausa vatni) não implica continuidade ritual; trata-se de uma analogia semântica.

Paralelos clássicos: Aristóteles, Virgílio, Plutarco e Xenofonte

A ideia de “banhar o recém-nascido em água fria” não nasceu com os germânicos, mas pertence a um topos pedagógico e médico da Antiguidade. O gesto simbolizava o endurecimento corporal e a educação da natureza.

Aristóteles – Educação e fortaleza

No livro VII da Política (1336a), Aristóteles (384-322 a.C.) afirma:

Texto original (gr.)
 Γενομένων δὲ τῶν τέκνων οἴεσθαι δεῖ μεγάλην εἶναι διαφορὰν πρὸς τὴν τῶν σωμάτων δύναμιν τὴν τροφήν· διὸ παρὰ πολλοῖς ἐστὶ τῶν βαρβάρων ἔθος τοῖς μὲν εἰς ποταμὸν ἀποβάπτειν τὰ γιγνόμενα ψυχρόν, τοῖς δὲ σκέπασμα μικρὸν ἀμπίσχειν, οἷον Κελτοῖς.

Tradução:
 “Quando as crianças nascem, deve-se reconhecer que o modo de criá-las exerce grande influência sobre a força do corpo. Por isso, entre muitos povos bárbaros é costume mergulhar os recém-nascidos em um rio frio, e entre outros — como os Celtas — envolvê-los apenas com pouca roupa.”

Aristóteles cita o costume entre povos bárbaros, especialmente os celtas, como exemplo de prática saudável: o contraste térmico fortaleceria o corpo. Não há reprovação moral, mas aprovação pedagógica. O gesto é apresentado como exercício de temperança e não como rito de exclusão.

Virgílio – O símbolo da dureza

Quatro séculos depois, Virgílio reutiliza o motivo na Eneida (IX 601-604). O guerreiro itálico Numano se gaba diante de Ascânio, filho de Eneias:

Texto original (lat.)
 durum a stirpe genus, natos ad flumina primum
 deferimus saevoque gelu duramus et undis.

Tradução:
 “De raça dura somos: nossos filhos recém-nascidos
 levamos primeiro ao rio e os endurecemos com o frio e as ondas.”

Walther (2021, p. 640) interpreta esses versos como topos literário[3] de virilidade. O banho gelado aparece como metáfora de bravura militar, não como prática etnográfica. Em Virgílio, o gesto é retórico, uma hipérbole nacionalista. Ainda assim, o paralelo semântico com Aristóteles revela a permanência simbólica da água fria como meio de formação do caráter.

Plutarco – Esparta e o banho em vinho

Plutarco, em Vida de Licurgo (16, 2), descreve dois costumes espartanos: a inspeção dos recém-nascidos e o banho em vinho como teste de resistência.

Texto original (lat.)
 matres infantes vino lavant, ut aegros statim detegant.

Tradução:
 “As mães lavam os recém-nascidos em vinho, para descobrir imediatamente os fracos.”

Walther lembra que o vinho substitui a água, mas a lógica é a mesma: prova física, não ritual sagrado. Esse exemplo reforça a dimensão cívica e militar do gesto: em Esparta, o corpo pertencia à pólis, e o banho, seja em vinho ou em água, servia como triagem da força.

Xenofonte – Ascese física

Xenofonte, em Constituição dos Lacedemônios (II 4), descreve a disciplina dos meninos espartanos:

Texto original (gr.)
 οὐδὲν ἦν αὐτοῖς ἄλλο πλὴν ἐσθῆτος ἑνὸς ἐνιαυτοῦ, καὶ κοιμῶνται ἐπὶ καλάμης.

Tradução:
 “Nada lhes era permitido além de uma única roupa por ano, e dormiam sobre palha.”

É possível associar esse testemunho ao mesmo campo semântico de ascese e resistência: a criança é moldada pela exposição ao desconforto. Está aí culminância do ideal helênico de formação (paideía): o banho frio é um entre muitos exercícios de domínio do corpo.

Síntese crítica

Reunindo Aristóteles, Virgílio, Plutarco e Xenofonte, conseguimos perceber que todos compartilham um mesmo motivo: o banho frio como metáfora da disciplina corporal. Nenhum autor sugere um conteúdo sagrado; todos tratam do gesto como prática higiênica ou moral. “O motivo antecede em séculos o cristianismo e pertence ao repertório da cultura clássica” (Walther, 2021, p. 641).

Com tudo isso em vista, fica mais fácil evidenciar que o suposto “ritual germânico de consagração” é, na verdade, uma transposição posterior de um tema pedagógico antigo. O mergulho na água gelada é símbolo de coragem e de adaptação ao meio, não de redenção espiritual.

O “julgamento da água” no Reno

Walther (2021, p. 640–641) encerra seu estudo examinando a relação entre o costume descrito por Galeno e Sorano e um tema posterior das fontes tardias: o “julgamento da água” (ordeal) associado ao rio Reno.

Nos séculos IV e V, autores latinos e gregos relataram que o Reno possuía a capacidade de distinguir crianças legítimas das ilegítimas, “aceitando” umas e “afogando” outras. O imperador Juliano, em seu Oratio II (25, 81d–82a), menciona esse mito, e ele reaparece em um epigrama da Anthologia Palatina (9.125) e no Paradoxographus Vaticanus, que o atribui não aos Celtas, mas aos Germanoi.

Texto original (lat.)
 Rhenus pueros legitimos servat, illegitimos absorbet.

Tradução:
 “O Reno preserva as crianças legítimas e afoga as ilegítimas.”

Andreas Hofeneder e Mario Lentano comentam que esse “teste do Reno” não passa de mito literário. Trata-se de um desenvolvimento tardio do mesmo motivo aristotélico do mergulho, reinterpretado como ordália: uma prova de pureza moral substitui a antiga prova de resistência física.

Vejo aqui um ponto crucial da análise de Walther: a persistência simbólica da água fria como meio de provação. O conceito em estudo (a imagem) sobreviveu e se transformou de um contexto científico/corporal para um contexto espiritual não por causa de evidências históricas concretas sobre o cotidiano das pessoas (etnografia direta), mas sim por causa do poder das histórias, da ficção e da retórica (camadas literárias) que continuamente recontaram e adaptaram a ideia original.

 

Conclusão geral

A leitura combinada das fontes gregas, latinas e nórdicas permite, segundo Walther (2021), descartar a existência de um ritual germânico de “imersão consagratória”. O que há são interpretações sucessivas de um mesmo topos antigo, recontextualizado por diferentes tradições.

1.      Em Aristóteles, o mergulho é exercício pedagógico.

2.      Em Virgílio, é metáfora heroica.

3.      Em Plutarco e Xenofonte, é método de seleção cívica.

4.      Em Sorano e Galeno, torna-se prática médica e eugênica.

5.      Nos autores medievais nórdicos, é lembrança literária usada para nomeação.

6.      Nos autores tardo-antigos, converte-se em julgamento moral.

Como a própria Walther conclui:

“Nenhuma das fontes — gregas, latinas ou nórdicas — apresenta evidência de um rite de passage sagrado anterior ao cristianismo. O motivo da imersão é físico e ético, não teológico” (Walther, 2021, p. 641).

A “imersão do recém-nascido” nunca foi um rito germânico isolado, mas parte de uma tradição mediterrânea de pedagogia do corpo. O gesto de mergulhar em água fria exprime a tensão entre vida e morte, razão e instinto, e é precisamente essa tensão que o cristianismo depois espiritualizou.

O diálogo entre as fontes clássicas e nórdicas revela uma mesma preocupação civilizatória: como transformar o nascimento biológico em pertencimento cultural. A água, nesse sentido, é o meio de passagem entre o “indivíduo” e o “membro da comunidade”.

O estudo não apenas corrige um equívoco historiográfico — o de projetar rituais cristãos sobre o paganismo —, mas também ilumina a longevidade dos símbolos aquáticos na imaginação europeia.

 

Referências – Fontes Primárias

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WÖHRLE, Georg. Aristote, Politique VII, 17, 1336a 12 sqq. une coutume barbare. Revue des Études Grecques, v. 104, p. 564–567, 1991. DOI: 10.3406/reg.1991.2525.

 

 



[1] Em termos simples, a epistemologia não se pergunta o que sabemos sobre o mundo (isso é o trabalho da ciência ou do conhecimento comum), mas sim como sabemos o que sabemos

[2] Para entender mais sobre isso, vale a leitura de Saxon Identities, AD 150-900 de Robert Filerman

[3] Topos literário é um motivo, tema ou fórmula que se repete com frequência em obras literárias, retóricas ou artísticas ao longo do tempo

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