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Estudos sobre o mito da pescaria de Thor


 

Existem muitas versões deste mito registrado de diversas formas pelo mundo escandinavo, as duas versões mais relevantes para os estudos estão preservadas em Hymiskvida e na Snorra Edda, sendo o primeiro encontrado no Codex Regius composto por volta do séc X ou XI, sendo o sétimo poema e a segunda versão é encontrada no Gylfaginning cap 48.

Hymiskvida possui algumas semelhanças com Thimskvida, onde seja na busca do martelo roubado quanto pelo caldeirão, são mitos que de certa forma retratam a estrutura social da nobreza nórdica, onde através de festas e celebrações os laços entre os membros da comunidade são fortalecidos e os nobres afirmam seu poder, sendo assim uma forma de mostrar Thor como deus dos camponeses, engajando em demandas para a manutenção social e manter as tradições, onde no mito temos a adição da figura misteriosa de Týr e sua possível família, tendo um foco maior na trama interpessoal dos personagens do que de fato no combate entre Thor e a serpente do mundo.

Gylfaginning escrito por Snorri traz uma narrativa diferente, onde não é mencionado a participação de qualquer outro personagem ou deus além de Thor e Hymir, sendo o mito a parte final de uma sequência de aventuras de Thor com Utgard-Loki, um dos principais pontos do mito registrado por Snorri é a ideia da possível morte da serpente.

A tradição germânica e nórdica é oral, então sabemos que ao longo de muitos séculos as histórias podem ter sofrido diversas alterações para se encaixar dentro do contexto de cada povo e época, e que muitos podem ter passado por grandes influências externas, então vamos ir mais a fundo no mito e buscar o que as demais fontes podem nos revelar e assim auxiliar quem sabe a elucidar um dos maiores mitos nórdicos. 

pedra de Hordum

As fontes pictográficas, geralmente muito antigas, gravadas em pedras seculares, muito certamente durante o período pagão, sendo uma das fontes mais seguras, porém, apresentam um problema, são imagens congeladas no tempo que nos impedem de ter uma compreensão total do mito, nos dando apenas um pequeno vislumbre de uma história certamente maior, mas ainda assim, podemos usá-las para comparar as versões dos mitos que chegaram até nós nos dias de hoje.

pedra de Altuna
O registro mais antigo relacionado diretamente ao mito pode ser encontrado no cemitério da igreja de Hordum, Jutlândia, sendo muito complicado datar essas imagens gravadas em pedra, julga-se que ela tenha sido feita entre os anos de 800-1100, estando muito desgastada pelo tempo, representando a imagem de um homem dentro de um barco com seu pé atravessando o casco enquanto segura uma linha de pesca, porém pelo desgaste do tempo a imagem da serpente desapareceu, restando apenas um traço da possível representação da figura, ao lado de Thor existe um segundo personagem, segurando uma espécie de gancho ou foice, prestes a cortar a corda, o que corrobora com os mitos registrados que chegaram até nós, mas diferenciado por exemplo da pedra encontrada em Uppsala, a pedra de 
Altuna é uma das poucas pedras rúnicas sobreviventes com ilustrações exclusivamente pagã da mitologia nórdica, onde temos apenas a representação de Thor no barco, com seu pé transpassando o casco do barco, uma possível cabeça de boi sendo utilizada como isca e podemos ver a figura da serpente, mas temos a ausência de Hymir, porem não podemos afirmar ser uma nova versão do mito ou apenas a falta de espaço da pedra, que impediu que o artista pudesse representar o mito em sua totalidade.


gravura na cruz de Gosforth

A Cruz de Gosforth é um exemplo que ainda causa muitos debates, a cruz de Gosforth é um grande monumento de pedra no cemitério de Santa Maria em Gosforth , no condado inglês de Cumbria , datado da primeira metade do século X. Anteriormente parte do reino da Nortúmbria , a área foi colonizada pelos escandinavos em algum momento do século IX ou X. Ganhou reputação pela sua combinação de símbolos cristãos com símbolos nórdicos, sendo uma prova tangível do impacto da cristianização da Escandinávia, onde vemos a figura de dois homens em um barco lançando uma espécie de gancho na água, porém não existe nenhum simbolismo gráfico que classifique um dos personagens como Thor, e também não existem representação da serpente, sendo no centro do barco uma figura representada que de certa forma lembra um martelo, mas sendo provavelmente um mastro estilizado por conta de seu cabo alongado, por mais que existam muitas representações de serpentes ao longo da cruz, elas representam o mal a ser combatido por Jesus em uma visão cristã onde o diabo é representado pela serpente que tentou Eva, sendo assim uma imagem que possivelmente representam imagens puramente cristãs, possivelmente alguma passagem que envolve os apóstolos de cristo.

Outras fontes que podemos encontrar mais pistas sobre o mito são os poemas escáldicos, principalmente os poema-escudo, imagens que eram pintadas em escudos que eram utilizados para decorar os grandes salões dos senhores, onde muitos foram registrados em poemas como o Ragnarsdrápa séc IX, escrito por Bragi Boddason, um poema muito rico em uso de Kenningar, onde temos uma vaga menção a um companheiro que corta a linha, mas sem especificar que seja Hymir, sendo retratado no poema que a pescaria da serpente do mundo tem como intuito testar a força do deus, Husdrápa, escrito por Úlfr Uggason escrito em 985 e preservado no Skaldskaparmál possui alguns kennings obscuros, e faz menção a um golpe na cabeça de um acompanhante assustado que corta a corda, que julga-se ser Hymir, onde se menciona a possível decapitação da serpente, possível fonte que Snorri utilizou para escrever sua versão, porém confusa e conflitante, Gamli Gnaevadarskald, poeta obscuro Islandês do séc X registra que Thor definitivamente não bate em Hymir, e que a serpente é morta, podendo ser encontrado esse registro no cap 11 do Skaldskaparmál.

Ölvir Hnúfa também cita o mito da pescaria em um fragmento de poema, sendo assim, tais poemas e registros históricos nos mostram quando e onde esse mito era conhecido, sendo também o uso de Kenningar uma prova de que a audiência conhecia de forma geral o mito e seus personagens, nos revelando que o mesmo era conhecido em toda a Escandinávia sendo assim um mito pan-escandinavo, certamente passando por alterações devido liberdade poética de cada skaldo, porém sempre mantendo sua essência.

Uma forma de nos ajudar a entender melhor o mito é também conhecer melhor a antagonista, a serpente do mundo, Midgardsormr, sendo esse nome atestado apenas no Gylfagninning, sendo seu nome mais comum e mais antigo Jormungandr (monstruoso), encontrado no völuspá e na poesia escáldica, também sendo relacionada a palavra Iminsul e Gandr, que significa feitiçaria ou vara mágica.

Mesmo sendo uma figura caótica, filha de Loki e irmã do Fenrir e Hel, Jormungandr exerce uma certa função de ordem sobre a terra, sendo registrado que todas as vezes que ela foi retirada do mar a terra foi abalada por fortes tremores, sendo atestado em vários kenningar o seu tamanho que é capaz de contornar o mundo inteiro, um ponto curioso está em seu nome Gandr ( magia).

Mjolnir de Skane
A palavra Gandr está sempre associada à magia, como varas mágicas, magia falada e muitos nomes
de xamãs lendários possuem o mesmo nome como Gand-álfr, Gand-reid, Gand-vik, existem alguns achados  que indicam a utilização de bastões mágicos ligados ao Mjolnir, existindo muitos pingentes de Thor encontrados com representações de serpentes como no pingente de Skane, representando o equilíbrio cósmico entre o caos e ordem (Thor+ serpente + magia), muitas representações da batalha entre a serpente e Thor foram encontradas perto do litoral, mostrando que para a comunidade escandinava o mito estava muito além de ser algo apenas simbólico mas sim muito real e verdadeiro para um povo que via a magia como algo real, possivelmente quando as pessoas viam os raios atingindo as ondas do mar durante as tempestades eles enxergavam o seu deus lutando contra a terrível Jormungandr.

Um ponto interessante que muitas dessas informações levantam, é que com a morte da serpente em diversos mitos, a ideia do Ragnarok se torna praticamente invalidada, já que uma das grandes menções do mito seria que Thor mataria a serpente e depois cairia morto, e se de fato ele mata a serpente tal acontecimento não ocorreria, o que levanta a grande questão de que se o ragnarok é de fato um mito pagão ou fruto da cristianização, porém isso é assunto para um outro texto.

Assim chegando a conclusão de que é praticamente impossível encontrarmos uma versão original do mito, ou uma que seja mais verdadeira, mas ainda assim sendo um mito muito importante para o povos escandinavos, sendo um dos mais difundidos durante a idade média na forma das grandes serpentes marinhas e monstros que assombravam a mente dos marinheiros durante muitos séculos, e trazendo a tona a importante ligação com os mitos indo europeus que influenciaram diversos povos, onde mitos de entidades solares ou ligadas ao céu e o trovões enfrentam serpentes ou seres reptilianos, representando a luta entre o céu e a terra, o caos e ordem, em alguns casos até mesmo o verão vencendo o inverno, causando o degelo dos rios congelados fazendo com que assim a vida flua.


Fontes:

-Gylfaginning.

- Skáldskaparmál.

-Hymiskviða.

-Thimskvida

- Mitos do norte pagão : os deuses nórdicos de Christopher Abram.

-Dicionário de mitologia nórdica: símbolos, mitos e ritos de Johnni Langer.

 


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