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Vida, morte e pós vida segundo os antigos germânicos




Qual é o sentido da vida? Para onde vamos quando ela se findar?

  

  Responder essas perguntas e dar algum sentido à vida tem sido tarefa árdua de inúmeros filósofos, historiadores e líderes religiosos;  Podemos até argumentar que esta pergunta deu início às religiões, uma vez que sem um sentido ou um “final feliz” que justifique todas as mazelas da vida cotidiana, muitas crenças (se não todas) perderiam seu sentido. A vida e a morte estão intrinsecamente conectadas ao sentido da interpretação do divino e a ritualística ao seu redor. 

   Entender como estas perguntas foram concebidas e como elas foram, de alguma forma respondidas, podem nos dizer muito sobre como a cosmovisão, sociedade e paradigmas dos antigos eram estruturados. Com isso vos apresento este artigo que é fruto de pesquisa sistemática sobre como os antigos saxões lidavam com esta questão. Nas próximas linhas e na medida do possível, vamos tentar entender um pouco mais sobre como se deram essas perguntas e como elas foram respondidas .



A sociedade germânica e o sentido da vida


     No primeiro século da era comum sabemos que haviam mais de 70 tribos germânicas espalhadas pelo continente europeu, dentre elas as mais conhecidas eram os: Suevos, Frísios, Teutões, Lombardos, Visigodos, Ostrogodos, Anglos e Saxões, sendo este último o foco deste estudo.

    Um fato interessante sobre as tribos Germânicas é que elas nunca se intitularam como tal, o responsável por esse título foi o Imperador Romano Júlio Cesar durante as incursões romanas ao leste do rio Reno, e durante estas incursões obtivemos relatos valiosos do historiador Romano Publio Cornélio Tácito que no primeiro século esteve ali presente e nos descreveu elementos primordiais destes povos como seus cultos, ritualística, arte, aparência física e o básico sobre como se organizavam como sociedade.

     A partir dos relatos de Tácito é que sabemos por exemplo que por mais distantes que as tribos pudessem ser, seu modo de vida era bastante semelhante. Todos eram em suma, camponeses que cuidavam de pequenas porções de terra, suas dietas consistiam basicamente no consumo de pão, cereais e vegetais, a vida era simples e dura, mas tinham o necessário para sobreviver, não havia escassez e tampouco desperdício.

    Em números aproximados, as tribos eram compostas por várias famílias ou “clãs”, cada clã comportava de 12 a 20 pessoas aproximadamente,  no total uma tribo comportava até 200 indivíduos. Estes indivíduos eram divididos em quatro classes: as Autoridades (chefes de família e chefe da tribo), Militares (guerreiros), Trabalhadores (camponeses e artesãos) e abaixo destas classes principais os Escravos, homens e mulheres que eram privados de suas liberdades individuais, e a partir disso, seguiremos com a pergunta:


     O que era ser livre para um antigo saxão ? 

   

     Tácito classifica em sua obra "Germânia" os membros da sociedade germânica como Liberi e Servi. Tanto os nobres como os guerreiros, camponeses e artesãos são descritos por Tácito como pessoas : liberi, ou seja, Livres enquanto os servos ou escravos como Servi. Isso nos leva às origens etimológicas destes termos; O conceito sociológico de homem livre (liberi) no contexto Germânico não significa que o indivíduo em questão "está livre de algo", mas denota que o mesmo pertence a uma família ou tribo, isso se reflete na origem de alguns termos relacionados ao contexto de liberdade, como por exemplo: o desenvolvimento dos termos em Inglês moderno: Free e Alemão moderno: Frei, são adjetivos do Protoindo-europeu: Priyos que significa: 'queridos, amados', cuja origem e cognatos também são atestadas em: Indo-Iraniano, Eslavo e Celta.


  Ou seja, o homem livre (liberi) era aquele que era amado, cuja existência estava ancorada e definida por uma família. E poder pertencer a uma família era um privilégio negado aos Servi (escravos) (Benveniste 1969:255).


      Todos estes conceitos são compatíveis com a noção Germânica de vida em sociedade acima citados, a vida em família e em harmonia com a tribo (Innangard) era o que dava sentido a existência destas pessoas, tanto que a pior punição imaginável era ser expulso da tribo, viver uma vida reclusa e longe dos seus era pior do que a morte, ter alguém para amar e cuidar era tudo o que importava. Isso não apenas era o eixo articulador da vida cotidiana como também o que garantia que todos viveriam, e que se necessário morreriam uns pelos outros. 

     Em uma interpretação ampla ouso afirmar que esta concepção possa justificar o fato destes povos serem ávidos guerreiros e lutadores... tudo para defender seus entes queridos, a terra onde seus ancestrais descansam e seus locais de culto.


        Qual é o sentido da vida para os antigos saxões? A resposta não é concreta, mas tudo nos leva a acreditar que o sentido da vida era ter pessoas com quem dividi-la.


    

Morte e Rituais fúnebres




      A morte para o antigos germânicos como fenômeno, era basicamente uma mudança de estágio, onde o membro falecido seguiria existindo em outra forma, com outras atribuições e atividades. Vale sempre a pena lembrar que não haviam distinções entre sagrado e profano, tudo era sagrado e espiritualmente importante, principalmente os membros falecidos de uma tribo, que mesmo estando mortos continuavam sendo membros daquela comunidade; Esse conceito era quebrado apenas se o membro em questão tivesse sido excluído da tribo enquanto estava vivo (como citado acima).

    Os rituais fúnebres dos antigos germânicos tinham como único objetivo facilitar a  transição para estes novos modos de existência. E foi através destes rituais que os estudiosos identificaram a relação que existia entre os vivos e os mortos na cultura germânica. Graças ao magnifico trabalho da Doutora em Filosofia Alemã pela UCA Berkeley: Prisca S. Augustyn nós conseguimos reunir vários relatos e descrições de como esses rituais eram realizados.     

     Estes rituais atestam um relacionamento intenso entre os vivos e os mortos, no qual a crença em um princípio unificador da continuidade da vida em comunidade é manifestada. A relação entre os vivos e os mortos definem os limites entre o interno e o externo que ilustra a concepção da vida após a morte na cosmologia germânica.

    Seguindo o raciocínio, apresentarei alguns rituais peculiares envolvendo desde a preparação do corpo, até  o sepultamento:

  Uma das superstições dos antigos, era a de que os mortos poderiam levar algum membro vivo da tribo consigo para o outro lado. E para evitar este tipo de acontecimento o herdeiro do falecido deveria fechar  os olhos da pessoa morta por trás e cobrir o corpo, de modo a que o cadáver não pudesse levar essa pessoa com ele. Outra parte importante da ritualística envolvia a limpeza do corpo, o contato com a água prepara os mortos para a "vida pós-mortal". Assim como durante o nascimento, onde também se banhava o recém nascido para que a alma pudesse ser recebida pelo corpo; A água desempenhava papel fundamental na ritualística fúnebre.

     Era importante também que o corpo do falecido não saísse do local onde morreu pela porta de entrada, mas que, em vez disso saísse através de um buraco feito na parede, através do qual seria retirado. O buraco é então fechado novamente, para impossibilitar que falecido regressasse a casa da família para assombrar ou levar qualquer pessoa para o outro lado.

      A preocupação de que um morto pudesse voltar a vida, era recorrente no mundo germânico, os Wiederganger como é conhecido na Alemanha ou Draugr na Escandinávia eram algo muito próximo dos “ zumbis” da nossa cultura atual, e representavam grande risco para os vivos, tanto que se algum membro problemático da tribo falecesse, os membros vivos tomavam certas medidas a fim de evitar esse provável retorno, como Hasenfratz exemplifica: 


“Era quase certo que membros problemáticos da tribo pudessem retornar como um morto-vivo, e para tentar evitar que isso acontecesse o  corpo era  muitas vezes amarrado à sepultura ou pedras eram amarradas ao peito para evitar seu provável retorno” (Hasenfratz 1992:70-71).



Sepulturas e pós vida.


    Como vimos acima, a morte era encarada como uma continuação da vida comunitária terrena sem as limitações da matéria, e diferentemente dos rituais de preparação do corpo que tinham como função facilitar a passagem do falecido entre os mundos, a sua sepultura era essencial para definir quais destinos a alma (seola) do indivíduo viria a tomar, um elemento central da vida após a morte é sem dúvidas os montes tumulares ( Grabhügel ), esses montes agiam como incubadora do ser ali sepultado, como se a mãe terra o estivesse transformando e o preparando tanto para o ciclo físico de transformações da matéria quanto para a vida pós mortal em um reino sublime onde todos os que ali jazem dariam continuidade à vida em comunidade, e isso nos reafirma a importância que a sepultura tinha no ideal antigo, a ideia da sepultura familiar é importante neste contexto, pois a sepultura, em que a tribo enterra os seus mortos, assegura a continuação da "vida" comunitária após a morte, diferentemente de túmulos individuais, que encomendam o falecido ao “reino geral dos mortos”  ou “Allgemeines Totenreich” Guntert (1937:27) 


    Monte tumular Anglo-Saxão (Grabhügel)


   O reino geral dos mortos, também conhecido como Hel em nórdico antigo, Hellea em antigo  saxão e Holle em alemão atual, não era um lugar de castigo para os germânicos, mas sim um lugar aonde o falecido iria para repousar sem o contato com a família. Apenas sob influência cristã “Hellea” fora reinterpretado como um lugar de condenação para aqueles que viveram fora das normas cristãs.  

 Hellea, o reino geral dos mortos ou Submundo é o destino de todos os mortos, mesmo que por um curto período de tempo, do ponto de vista logico vemos essa afirmação como uma interpretação literal do ato de ser sepultado na terra, onde no seio da deusa da terra ( que recebe muitos nomes sendo Holda ou Hellea os mais conhecidos ) os falecidos se transformariam em seres sublimes que poderiam seguir para seus destinos mais apropriados, seja viver com seus entes queridos ( como dito anteriormente ), viver com os deuses ou no cenário menos ideal.... habitar o submundo longe de seus familiares ( uma espécie de “castigo” para os membros excluídos da tribo. Este processo de preparação também é encontrado na cultura nórdica como Helvegen ou estrada para Hel, se referindo ao processo em que o indivíduo se encontra no submundo até poder enfim descobrir seu Uurd ( destino ). 






   Podemos notar que a maneira como se vive e se morre desempenhava papel importantíssimo e decisório sobre quais fins a alma do falecido tomaria, se o indivíduo em questão tivesse sido um péssimo exemplo, que não respeitava a Frith da tribo, não cumpria com suas obrigações e não protegia sua família era destino certo ser esquecido por aqueles que negligenciou em vida, vivendo a eternidade com outras pessoas como ele, longe dos entes queridos.


   Também é possível tecer comentários sobre reencarnação, entretanto este assunto é bastante complexo e as fontes são muito escassas.... todavia se pode adiantar que era um conceito conhecido pelos antigos e que era uma das possibilidades. Por motivos pragmáticos vou me ater de conceber quaisquer comentários sobre o tema, que é bastante promissor e será abordado em um futuro próximo.


Referências

Hasenfratz, Hans-Peter. 1982. Die Toten Lebenden. Eine religionsgeschichtliche Studie zum sozialen Tod in archaischen Gesellschaften. BZRGG 24. Leiden

Augustyn, Prisca. 1996. The Semiotics of Fate, Death, and the Soul in Germanic Culture: The Christianization of Old Saxon

The Saxon heathen cosmology- Sass, Robert. Disponível em: https://www.aldsidu.com/post/saxon-heathen-cosmology

The Saxon Folksaga Reconstructed - Sass, Robert. Disponível em https://www.aldsidu.com/post/the-saxon-folksaga-reconstructed

"The Germanic Tribes" Disponpivel em: https://www.youtube.com/watch?v=OTyFlmlJMWI&t=273s



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