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Além do Deus do Trovão: Thor & Irminsul

No paganismo germânico, há muita coisa para ser descoberta e temos atualizações constantes. Por tanto, temos que ter a mente aberta para possíveis mudanças de paradigmas. Um dos principais paradigmas que existem hoje é que quase tudo que é descoberto é relacionado a Uuoden. Não só isso, quase todo simbolismo que temos está sempre relacionado ao deus xamã. É quase como se fosse um politeísmo monoteísta. Ou o famoso cristianismo com skin nórdica. Temos um deus criador principal, pai de todos, que comando no céu um paraíso para os escolhidos que são protegidos por anjos.

No germanismo, um dos principais símbolos é o Irminsul. Apesar de não se saber com precisão total o que ele era, temos uma ideia geral: era um pilar ou uma árvore sagrada para os saxões que possivelmente representava algum deus - ou até mesmo todos os deuses. Existem vertentes hoje que acreditam que o Irminsul era um complexo religioso, já que os cristãos demoraram 3 dias para destrui-lo.

Eresburg (Obermarsburg), o local mais provável da localização do Irminsul
Reconstrução de um templo em Tisso, na Dinamarca. Os dinamarqueses eram culturalmente muito próximos dos Saxões. Acredita-se que este templo fosse muito parecido com o Irminsul. 

Reconstrução de dois totens do templo de Tiso.

Seja como for, o Irminsul era um local de oferendas e a crença era a de que ele segurava os céus. Obviamente, hoje é associado a Uudoen, assim como quase todos outros símbolos. Então, este autor ousou desafiar os paradigmas já estabelecidos e resolveu mostrar porque o Irminsul não deve ser associado ao deus caolho, mas sim, a outro muito maior.

Aqui vão alguns fatos a serem considerados:

  1. Sabe-se que os saxões utilizavam pilares como local de culto para seus deuses desde pelo menos 531. Mais de duzentos anos antes da Era Viking. Isto se não levarmos em consideração as Colunas de Hércules descritas por Públio Cornélio Tácito no ano de 98;
  2. Considerando o início da Era Viking em 793, a associação de Odin, stricto sensu, ao Irminsul é anacrônica, não por muito, mas é. Odin é a versão nórdica do deus, a versão viking por assim dizer;
  3. Como sabemos, antes de Odin acumular funções e epítetos, esta figura se chamava Wodan (ou Uuoden para os saxões), um deus muito diferente daquele que veio a ser o principal na Era Viking. Aqui no Germania nós já postamos as diferenças entre Odin e Wodan;
  4. Davidson comenta que “há razões para acreditar que, na época de Tácito, o deus romano da guerra, Marte, não era identificado com Wodan, mas sim com outro deus germânico, Tiwaz. Na verdade, Odin aparenta ser um sucessor tanto de Wodan quanto de Tiwaz, mantendo algumas das qualidades e atributos”;
  5. Irmin é cognato em saxão antigo de Jormun, em nórdico antigo, que por sua vez, segundo a Edda de Snorri – escrita quase 500 anos depois da queda do Irminsul, é um dos nomes de Uuoden. Ambos significam “grande”, ou “terra”;
  6. O primeiro significado de Irmin/Jormun pode ter associação com Uuoden de maneira metafórica (como qualquer outro deus, diga-se de passagem), mas não no sentido literal. Não há passagens que descrevem ele como grande, ou impressionante, fisicamente;
  7. No significado de “terra” temos uma associação, no mínimo, muito fraca. Uuoden, apesar de ser um deus dos mortos, governa no céu. A Caçada Selvagem comandada por ele vem do céu. Como psicopompo, ele transita, não só no limite entre o mundo dos vivos e dos mortos, mas também entre os outros mundos, guiando guerreiros e xamãs;
  8. Nenhum animal associado a Uuoden é relacionado à terra. Nenhum objeto de Uuoden é associado à terra. Em outras palavras, não há associação alguma entre Uuoden e terra.

Mas então, por que Snorri teria colocado Jormun como um dos epítetos de Odin? A primeira resposta, que é a mais fácil, já foi mencionada acima: Odin seria grande de maneira metafórica. Odin seria grande por ser superior, extraordinário, importante. Mas nada que seria único ao deus dos corvos.

 A segunda resposta vem de Turville-Petre e de outros autores que reconhecem que vários dos inúmeros epítetos de Odin na Era Viking foram emprestados de outros deuses. Afinal, à medida que ganhava tal importância, Odin absorvia o papel de outros deuses e, consequentemente, seus epítetos.

Por último, Tácito descreve Irmin como sendo um dos três filhos de Mannus, o progenitor dos homens segundo as lendas germânicas. Seus outros irmãos seriam Ing e Ist.

“E a partir dos nomes destes, são chamados Ingévones os que habitam próximo ao Oceano, Hermiones os da região central e Istévones os demais” – Tradução de Maria Cecília Albernaz Lins Silva de Andrade.

A identidade de Ing dos Ingévones é bem conhecida: Ingui-Frey, ou Yngwi-Freyr, para os nórdicos. Presume-se, erroneamente como pretende mostrar este artigo, que Irmin seja Uuoden. Sobra então Istô. E quem seria Istô, dos Istévones? Mais uma vez, temos alguns pontos a analisar:

  1. O Allodium Francorum, organização que busca reconstruir o paganismo Franco, descreve Istô/Ist, de quem os francos descendem segundo eles, como sendo o Furistadôd (Primeiro dos Mortos) e como tal, o governante dos mortos no Wîtansal (Salão dos Sábios);
  2. Istô, após ter sido empalado pelo touro Doldôth (Morte Selvagem), se torna a Morte Andarilha;
  3. Ele possui o título de Mokka, um caçador psicopompo que transita no limite do mundo dos vivos e dos mortos;
  4. Tácito diz que os germânicos adoram Mercúrio acima de todos. É consenso que ele se referia a Uuoden. Mercúrio é um deus psicopompo, mensageiro e andarilho, da magia, da inspiração e da escrita;
  5. Mercurius Cimbrianus ou Mercurius Cimbrius é um deus germânico mencionado em sete inscrições dedicatórias romanas. Essas inscrições são do território da província romana da Germânia Superior do século II ao III. Como o deus é identificado com o Mercúrio Romano, este 'Mercúrio dos Cimbri' é geralmente pensado para representar o deus germânico Uuoden;
  6. O significado de Uuoden vem do proto-germânico Wodanaz, que significa o líder dos furiosos, daqueles em êxtase. Referência clara ao lado xamã e sobrenatural do deus;
  7. Jacob Grimm cita que a palavra Istévones vem de Askr que se pronuncia Ash, que é o freixo, uma árvore utilizada para xamanismo e que, ora vejam só, é Yggdrasil.
  8. Podemos então chegar à conclusão, ou pelo menos à dúvida, de que Istô, e não Irmin, é Wodan.

Placa achada no em Heiligenberg, mencionando Mercurio Cimbriano em latin

Finalmente, o último argumento e talvez o mais importante, que vai contra a associação Irminsul-Uuoden, é a de que nem Wodanaz, nem Wodan, nem Odin eram/foram associados a pilares ou colunas - fora da prática normal de criar imagens dos deuses em pilares de madeira. Nenhum achado arqueológico ou evidência por escrito indica que o culto ao deus andarilho tinha alguma relação especial com pilares ou colunas.

Em contrapartida, existe um deus que, sim, é associado a pilares de maneira mais simbólica do que uma simples representação. Também existe um deus no qual o epíteto “Irmin”, serve em todos os sentidos. Este mesmo deus, possui muito mais afinidade com o Irminsul como um pilar que segura o mundo do que qualquer outra divindade. Na época de Tácito se chamava Donar, para os saxões Thunar, e finalmente para os vikings, Thor.

Vamos aos fatos:

  1. Inúmeras fontes descrevem o Irminsul como um local sagrado para os saxões. O único exemplo de um deus que sacraliza objetos, as runas e inclusive áreas inteiras, é Thunar;
  2. As mesmas fontes descrevem o Irminsul como “o pilar que segura os céus”. Apesar de não termos nenhum mito que menciona Thunar nesta função, podemos fazer por comparação. Pois uma das razões pelas quais Tácito comparou Thunar a Hércules pode ser a de que Hércules, em seus Doze Trabalhos, tenha segurado os céus no lugar de Atlas. Já se a associação dos monges do início da Era Medieval de Thunar a Júpiter for correta, a alusão a segurar os céus também é válida, pois, segundo Júlio César no seu Commentarii de Bello Gallico, os romanos também acreditavam que Júpiter era o deus que segurava o céu;
  3. G. Turville-Petre and P. G. Foote em Nine Norse Studies relatam que na Inglaterra existe um lugar chamado Thurstable, que na época da Inglaterra pagã era chamado de Thunres Stapol, ou Pilar de Thunar. A Era Pagã na Inglaterra pós-Império Romano pode ir de mais ou menos de 230 até 630. Quando os vikings aportaram lá, a ilha já era considerada cristianizada;
  4. Ao fim da Era Viking há inúmeros relatos de Thunar associado a Öndvegissúlur, pilares de tronos (tradução livre), que eram pilares que ficavam em volta dos tronos dos chefes e reis durante a Era Viking, especialmente no fim desta;
  5. Consequentemente, temos evidências da associação de Thunar a pilares desde, pelo menos, o ano 230 até o ano 1.066;
  6. Este período pode ser ainda maior se considerarmos as Colunas de Hércules mencionadas por Tácito. O historiador romano descreve três deuses dos germanos: Mercúrio, Hércules e Marte. É unânime hoje que Tácito estava se referindo ao inimigo de Jörmungandr quando menciona Hércules;
  7. Tácito também menciona que ao longo do Reno encontram-se "Colunas de Hércules". Logo, por associação, Colunas de Thunar.Contudo, aqui precisamos abrir um parêntese. As Colunas de Hércules referem-se ao Estreito de Gibraltar, que teria sido aberto pelo herói grego no seu décimo trabalho, ao tentar resgatar os bois de Gerião. Não sendo o Estreito de Gibraltar formado por colunas literais, a o que estaria Tácito se referindo quando fala que “até hoje existem colunas de Hércules”? Apesar de o Estreito de Gibraltar ser um acidente geográfico, basta reparar na sua “verticalidade” que é fácil entender porque os povos antigos faziam a associação do estreito à colunas e/ou pilares. É possível que soldados romanos tenham visto as montanhas ao longo do Reno, e estas tenham ajudado na associação Hércules – Thunar.
  8. Considerando-se as Colunas de Hércules, nós temos quase mil anos de associações de Thunar a colunas/pilares.
  9. Como falei antes, Irmin significa grande. No primeiro sentido da palavra, que é o literal, o físico, a relação é óbvia. Thunar é sempre descrito como o mais forte dos Aesir, como o maior fisicamente falando, muitas vezes é chamado de O Mais Poderoso dos Ases;
  10. Um segundo sentido, que seria o poético, digamos assim, não elimina a associação de Thunar a Irmin, assim como não elimina nenhum deus ou deusa;
  11. Se partirmos para o significado de “terra” da palavra, aí a associação fica mais forte ainda. Thunar é literalmente filho da terra.
  12. A esposa de Thunar, Sif, é uma deusa da fertilidade da terra e a sua grande rival, Jörmungandr, é Serpente da Terra.

Mas você pode dizer “Léo, ninguém sabe se o Irminsul era um pilar, muitos dizem que era uma árvore sagrada”. Bom, neste caso, lembrarei o caro leitor de que Thunar também era associado a árvores, sendo a mais famosa destas o Carvalho de Donar, derrubado por Bonifácio no Século VIII. É interessante notar que apesar de o Protetor de Midgard não ser o único deus associado a árvores, ele é o único que possui uma árvore digna de nota devido a sua importância como local de culto.

Os Carvalhos eram sagrados para Thunar

Como podemos ver, os argumentos a favor de uma associação de Thunar ao Irminsul são muito mais fortes do que uma simples associação nominal atribuída a Odin e Irmin/Jormun.

No entanto, o que isto representa? Qual o objetivo de buscar derrubar este paradigma em nome do Deus do Trovão? É muito simples caro leitor: demonstrar que Thunar não é simplesmente um brutamontes que busca o genocídio de gigantes. Fazendo a associação ao Irminsul, vemos que Thunar possuía um sentido metafísico muito mais importante do previamente imaginado.

Com base no raciocínio acima, podemos especular este sentido. Se o Irminsul estava ligado à figura de Thunar, era Thunar quem segurava os céus.  Em outras palavras, era Thunar quem mantinha a ordem, pois ele que representava o axis mundi que mantinha as coisas em seus lugares. Sem ele, o caos toma conta. Isto é facilmente identificado nos mitos. Peguemos a Lokasenna por exemplo. Até a chegada do Trovejante, o caos reina no jantar de Aegir. No Skáldskaparmál, Hrungnir quebra várias leis da hospitalidade até que Thunar é chamado pelos deuses para restabelecer a ordem. Curiosamente, Thunar só é derrotado quando os seus rivais utilizam magia e enganação como no caso de Utgard-Loki no Gylfaginning. É ainda mais curioso que o rival de Thunar, Uuoden, é justamente um deus da magia e da enganação. Todas as vezes que deuses querem utilizar subterfúgios para conseguir o que querem, Thunar se opõem, como no caso da construção do Muro de Asgard.

É possível entender aqui a associação de Thunar com pilares e colunas já que é este que mantém as coisas no lugar. Sem um pilar, o teto de uma casa desaba. Sem a viga mestra, um prédio não se mantém em pé. Para que haja ordem no mundo, Thunar precisa erguer céus. Não é de estranhar que o Irminsul tenha sido o primeiro alvo de Carlos Magno. O objetivo era causar o maior dano possível à moral dos saxões, já que o eixo do seu mundo veio abaixo.

Mesmo que não existam textos contemporâneos ao paganismo detalhando a função metafísica de Thunar, com estudo e análise podemos enxergar um cenário amplamente mais relevante, significativo e profundo sobre a visão que os germânicos antigos possuíam sobre o Trovejante.

Continuaremos a nossa investigação sobre Thunar nos próximos artigos, em que iremos compará-lo a outras figuras mitológicas. A primeira será o grande herói grego, Hércules. 

Nota: Por uma questão de coerência neste artigo usamos os nomes em saxão antigo dos deuses. Logo, Thunar = Thor, Uuoden = Wodan. Lembrando que Wodan é uma figura diferente da de Odin dos nórdicos. O título utilizou o nome Thor por uma questão de reconhecimento do público.


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