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Thor (Donnar) - Uma introdução ao grande deus

 Thor (Donnar) - Uma introdução ao grande deus


Famoso na cultura pop, adorado entre os diversos fãs de Heavy Metal, padroeiro das quintas feiras, com seu principal símbolo transformado em artigo de moda e, mesmo nos dias de hoje, largamente conhecido: Thor, o deus germânico do trovão e portador do martelo Mjölnir.


Sem dúvidas Thor é a divindade mais famosa fora dos mitos germânicos, superando até mesmo Odin. Essa importância reflete também na forma que os praticantes da antiga religião germânica viam o deus. Por isso nós do Germania Institut, prestando o devido respeito ao grande deus, iniciaremos a partir deste artigo uma série totalmente dedicada a estudar todos os aspectos do deus Thor.


Thor é comumente caracterizado como um deus empunhando um martelo associado a relâmpagos, trovões, tempestades, bosques e árvores sagradas, força, proteção da humanidade, santificação, fertilidade entre outros.


Thor (do Nórdico Antigo Þórr) é a forma mais conhecida de chamar este deus. Entretanto a divindade também ocorre em inglês antigo como Þunor, em frísio antigo como Thuner, em saxão antigo como Thunar e em alto alemão antigo como Donnar (o nome que nós da Germania Institut mais utilizamos), todos decorrentes do teônimo proto-germânico *Þun(a)raz, que significa 'Trovão'.


Mas qual o motivo dessa divindade tão antiga ser popular até nos dias de hoje? Ela era importante para os povos que praticavam essa antiga religião? Com essa breve introdução e esses questionamentos, convido a você, caro leitor, a embarcar nessa jornada que se inicia sobre o deus mais querido entre os povos germânicos!


Quem de fato é Thor? Os problemas da modernidade!


Certamente a fama moderna de Thor tem suas inegáveis vantagens. Graças a ela o grande público tem conhecimento da existência do deus e, ainda que de forma errada, mantém a sua memória viva mesmo depois de mais de mil anos da cristianização dos povos germânicos.

Indo direto ao ponto: o Thor da Marvel Comics (certamente a visão mais popular moderna do deus) é muito diferente do Thor dos povos germânicos. Como vamos aprofundar muitos desses temas aqui neste texto introdutório e nos próximos artigos, vou citar apenas as principais diferenças, das quais:


  • Thor não é loiro, mas sim ruivo. Inclusive essa era uma de suas mais populares características, sendo Thor conhecido até como o vermelho;

  • Thor não era um brutamontes acéfalo como retratado na cultura pop e até mesmo em parte das Eddas. Os papéis e áreas de influência de Thor eram muito maiores que apenas as batalhas, mas questões como santificação de pessoas, eventos e objetos, cura e destruição da ignorância. Certamente uma entidade com essas características não seria simplória;

  • É muito comum ser retratado como abaixo de Odin na hierarquia do panteão. Entretanto existem diversas evidências que por muito tempo ele tenha sido o principal deus do panteão, inclusive sendo o líder dos Aesires;

  • O martelo de Thor, chamado de Mjölnir, não voava como o do personagem da Marvel. Ele tinha o cabo curto demais, precisava ser empunhado com uma luva própria para isso, sempre voltava para a mão do dono ao ser lançado e seus poderes iam muito além de questões relacionadas a combate. Provavelmente essa arma nem sempre tenha sido um martelo, podendo ter sido também uma clava ou até mesmo um machado;

  • No mito original proveniente do protoindo-europeu, Thor não morre na batalha contra a serpente da terra. Na verdade Thor trava essa mesma batalha todo o inverno e a sua vitória resulta no degelo dos rios e campos congelados e, com isso, permitindo que as plantas voltem a prosperar. Esse evento cíclico representa o fim do inverno e início da primavera.


Thor: Uma divindade pan-européia


Em um outro artigo já explicamos quem foram os povos Proto-indo Europeus (que iremos abreviar para PIE a partir de agora), qual a sua relação com os povos germânicos e, consequentemente, com sua  cultura e religião. Certamente iremos nos aprofundar muito mais nesse tema, já que esses povos servem de base para entendermos como esse movimento religioso começou e foi se modificando com o passar dos tempos. 

Voltando ao assunto principal deste artigo, Thor é certamente uma divindade que ajuda a mostrar o quão importante os povos PIE foram para formação das religiões por toda a Europa e, certamente, para a dos povos germânicos. Isso se deve ao fato de que os povos PIE cultuavam um deus chamado Perkwunos (Proto-Indo-Europeu: *perkwunos, 'o Atacante' ou 'o Senhor dos Carvalhos'). Vamos entender juntos quem foi Perkwunos e qual a sua relação com Thor.

Perkwunos era uma divindade ligada às chuvas frutíferas e seu nome provavelmente era invocado em tempos de seca. Em um mito indo-europeu difundido, a divindade do trovão luta contra uma serpente de água de várias cabeças durante uma batalha épica, a fim de liberar torrentes de água que haviam sido reprimidas anteriormente. O nome de sua arma, Meld-n-, que denotava tanto 'relâmpago' quanto 'martelo', pode ser reconstruído a partir das tradições atestadas. 

Caso já não tenha ficado clara a relação, vamos recapitular:

  • Perkwunos é o deus trovão e senhor dos carvalhos. Thor significa trovão e é o deus dos carvalhos, como pode ser facilmente atestado pelos carvalhos dedicados a ele (exemplo é o Carvalho Sagrado de Donar que existia em Hesse na Alemanha);

  • Perkwunos derrota a Serpente da Terra a fim de liberar as chuvas benéficas que marcam o fim das glaciações do inverno e permite com que as plantas ressurjam. No poema Völuspá é dito que Thor enfrenta a Jörmungandr (também conhecida como a Serpente da Terra - do nórdico antigo Miðgarðsormr);

  • Perkwunos possui uma arma, presumivelmente um martelo pela etimologia da palavra, chamado Meld-n. Thor possui um martelo chamado Mjölnir. Ambos podem ser interpretados como a palavra relâmpago ou ainda advindos do verbo moer (to mill).

Dadas algumas dessas relações fica evidente que o Perkwunos é o deus que mais tarde foi interpretado pelos povos germânicos como Thor, Donnar ou Thunar. Mais do que isso, é possível ver essas mesmas similaridades com diversas divindades de outros povos europeus, uma vez que todas essas características são facilmente mapeadas entre elas. A imagem a seguir mostra alguns desses exemplos.


Portanto é seguro constatar que Thor é uma das mais antigas e importantes divindades de toda a Europa. Seu culto se espalhou por todo continente europeu e até mesmo em parte da Ásia, assumindo particularidades de cada região e povo.

Certamente vamos explorar o tema Perkwunos e sua relação com Thor em outros artigos, mas por agora vamos nos ater às características já citadas e a uma outra característica que vemos na divindade PIE e não vemos na cognata nórdica: a de Pai do Céu ou Líder de Panteão.


  Thunar / Donnar entre os germânicos continentais: A era de ouro


Thunor era largamente conhecido e cultuado entre os povos germânicos desde pelo menos a Idade de Ferro pré-romana (a partir de 1200 antes da era comum) até o período da cristianização dos povos germânicos continentais promovida por Carlos Magno (em 782 Widukind¹ se converte e marca o fim da resistência saxã). Territorialmente esses povos estavam espalhados desde a Escandinávia, passando pelos países centrais da Europa, Grã Bretanha e até mesmo (através da expansão dos Godos) a península ibérica e o norte da África.


Durante esse grande período de tempo, Thunar (como o grande deus era chamado entre os saxões), foi extensamente cultuado e com influência religiosa em vários assuntos, tais como:

  • Patrono dos guerreiros e deus da batalha;

  • Santificador, por meio de seu martelo, de objetos e eventos especiais (nascimentos, casamentos, colheitas, etc);

  • Garantidor do fim do inverno e responsável pelas chuvas que beneficiava a agricultura;

  • Protetor da humanidade, gerador de saúde e agente contra forças malignas;

  • Provável líder do panteão divino germânico, uma vez que ele é citado primeiro no Old Saxon Baptismal Vow e tinha diversos templos em sua honra (Carvalho Sagrado de Donar e Irminsul, por exemplo).

Existem duas importantes fontes que atestam o culto ao deus do trovão entre os germânicos que são o livro Germania do historiador romano Cornélio Publio Tácito e um antigo manuscrito encontrado em Mainz, Alemanha, chamado Old Saxon Baptismal Vow (numa tradução livre “Antigo Voto Batismal Saxão”).

No Germania Donnar é citado num trecho onde é comparado ao deus romano Hércules. O trecho diz  “Hércules e Marte aplacam com animais permitidos.” e também se refere a sacrifícios animais feitos em prol do deus. Isso vai ao encontro de uma divindade romana-germânica muito similar a Donnar, cultuada na região do Baixo Reno entre os Batavi, Marsaci, Ubii, Cugerni, Baetasii, e provavelmente entre os Tungri chamada Hercules Magusanus.

Já no Old Saxon Baptismal Vow, que tem sua provável criação por volta de 800, vemos que o deus do trovão já é alvo de descredibilização por parte cristã de modo que é classificado como um demônio.  O trecho onde a divindade é citada diz “Renuncio a todos os atos e palavras do diabo, Thunaer, Woden e Seaxnot, e todos aqueles demônios que são seus companheiros.”. Este manuscrito é deveras interessante pois denota a dificuldade de conversão dos germânicos e também, ainda que com algum questionamento, a ordem em que os deuses são citados. O fato de Thunar ser citado primeiro pode ser mais uma evidência de que ele era o deus mais influente e importante.

Desta forma, como diz o subtítulo, esta foi a era de ouro do culto ao deus do trovão. Certamente foi neste período de tempo em que a divindade esteve em maior evidência, sendo observados templos e cultos por todas as classes sociais e praticamente todas as tribos germânicas. Donnar era, sem dúvidas, o mais querido dos deuses.


Thor dos nórdicos: o crepúsculo do grande deus


Agora avançamos um pouco na história e vejamos os povos nórdicos, que viviam onde conhecemos hoje como Noruega, Suécia, Dinamarca e Islândia, e que permaneceram longe do alcance de Carlos Magno e seu assédio em prol da cristianização. Muito por estarem relativamente isolados territorialmente e por terem migrado a muito tempo vindos do continente europeu, os nórdicos continuaram o culto religioso pagão germânico e nele incorporam questões do seu dia a dia. Apesar disso, Thor ainda mantinha a mesma importância que outrora seus primos continentais davam.

No século 11, o cronista saxão Adão de Bremen registra em seu Gesta Hammaburgensis Ecclesiae Pontificum que uma estátua de Thor, da qual ele descreve como "o mais poderoso", ficava no Templo de Uppsala no centro de um trono triplo (ladeado por Woden e "Fricco ") localizado em Gamla Uppsala, Suécia. Adão detalha que "Thor, eles acham, governa o céu; ele governa trovões e relâmpagos, ventos e tempestades, bom tempo e fertilidade" e que "Thor, com sua maça, se parece com Júpiter". Adão detalha que o povo de Uppsala havia designado sacerdotes para cada um dos deuses, e que os sacerdotes deveriam oferecer sacrifícios. No caso de Thor, ele continua, esses sacrifícios eram feitos quando a peste ou a fome ameaçavam. Anteriormente no mesmo trabalho, Adam relata que em 1030 um pregador inglês chamado Wulfred foi linchado por pagãos germânicos reunidos por "profanar" uma representação de Thor.

Existem diversos achados arqueológicos relacionados a Thor que atestam seu extenso culto e suas características. Destes podemos citar exemplos muito interessantes, tais como:

  • O Amuleto Rúnico de Canterbury, datado do ano 1073, onde há inscrições que convocam Thor para curar uma ferida banindo Thurs (gigante ou troll);

  • O Amuleto de Kvinneby, datado do século 11, onde é solicitado a Thor que, por meio de seu martelo, afaste todo o mal;

  • Diversas Runestones (grandes pedras rúnicas esculpidas em locais de passagem pública) citavam Thor. Muitas delas haviam inscrições pedindo a Thor que abençoe esses monumentos;

  • Diversos pingentes em formato de martelo que, principalmente no final da Era Viking, serviu como objeto para rivalizar a cruz de Jesus Cristo;

  • Um molde da Era Viking encontrado na Dinamarca com formatos do Mjölnir de Thor e da cruz de Jesus (imagem abaixo).  


Durante a Era Viking (793 a 1066 da era comum) gradualmente a figura de Thor como pai do céu e, possivelmente líder de panteão, vai sendo substituída pela de Odin. Isto se deve ao fato de que Odin assume o papel de deus da nobreza, da batalha e da poesia, questões muito relevantes entre os líderes vikings da época. A Thor cabe a ascendência sobre o homem comum, normalmente dedicado à agricultura, e ainda dos que residem nas regiões rurais mais afastadas dos grandes centros. 

Devido a isto, Thor é o último e mais difícil deus a ser demonizado pelos sacerdotes cristãos, tendo ainda sido cultuado em paralelo com Jesus. Além do molde com cruz e Mjölnir já citado, um exemplo interessante dessa resistência em abandonar o deus do trovão são as Inscrições de Bryggen encontradas em Bergen no século XII em uma Noruega já cristianizada. Nelas podem ser encontradas uma vareta de madeira com pedidos de ajuda a Thor e Odin.

Para finalizar a queda do poderoso deus do trovão, as Eddas apresentam uma versão mitológica do mesmo já muito deturpada e esvaziada do sentido original. Nelas Thor é reduzido a um valentão irascível e ignóbil, quando não ridicularizado ao se vestir de mulher. Temos que ter em mente que a Edda em Prosa (também conhecida como Edda de Snorri) foi escrita na Islândia do século 13, ou seja, cristianizada já a bastante tempo. O próprio Snorri já era nascido cristão e, seu principal intuito, foi reunir de forma poética os antigos contos dos povos antigos. Entretanto, apesar dessa clara influência cristã, a Edda em Prosa é de suma importância para a história de todos os povos germânicos, pois é graças a ela temos viva a memória dos antigos caminhos.


Conclusão


Conforme já citado, este artigo tem como objetivo introduzir um tema denso e de incomensurável importância para o paganismo germânico. Desta forma ele tem como claro objetivo impressionar o leitor com fatos e curiosidades para estimular o interesse em aprofundar o conhecimento sobre o velho deus do trovão, conhecimentos dos quais vamos explorar detalhadamente nos próximos artigos. Desta forma reforço o convite a todos para embarcarem conosco nessa incrível jornada para desvendar os segredos do mais querido deus entre os antigos germânicos e toda a antiga Europa, o padroeiro das quintas-feiras, o poderoso Donnar.


HAIL ASATHOR!




1 - Widukind foi um guerreiro e líder saxão que organizou a resistência contra o assédio do imperador Carlos Magno dos Francos.  


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