Definir termos subjetivos, intangíveis e
metafísicos como: Alma, espírito e todos os seus derivados, desafiam estudiosos
da ciência e espiritualidade em todas as culturas existentes.
Como podemos observar na história, diferentes povos possuem diferentes abordagens quanto a este tópico; algumas culturas absorveram elementos de povos vizinhos, outros permanecem com certo grau de preservação até os dias atuais enquanto outras descrições destes eventos desapareceram para sempre.
E quanto aos povos germânicos, será que possuímos bibliografia e descrições sobre estes tópicos ? Seria possível traçar paralelos ou até mesmo descrições fiéis do período pré-cristianização? Felizmente a resposta é sim para estas duas indagações.
Nos parágrafos seguintes vamos conhecer as
concepções fundamentais da espiritualidade germânica continental, com foco nos
antigos saxões. Mas antes
disso precisamos entender de onde vieram estas informações.
A Heliand
Uma das fontes deste estudo é um poema épico
escrito na primeira metade do século IX, que por curiosidade é também a maior
obra escrita em saxão antigo que temos conhecimento: a Heliand, que traduzindo
do Saxão Antigo significa: “Salvador ”, foi escrita com a finalidade de catequisar os
saxões recém-convertidos ao cristianismo depois das guerras saxônicas.
Neste poema temos adaptações dos textos
bíblicos para facilitar por meio de assimilação, a realidade pagã da época aos
novos ideais cristãos que estavam sendo introduzidos, ou seja, a Heliand é basicamente
uma adaptação da bíblia colocando Jesus como o salvador dos germânicos e como
um herói de família nobre com doze thanes que o seguiam, basicamente como: “uma
bíblia com skin germânica.”
E você caro leitor, deve estar se
perguntando: “ Mas em que diabos (com o perdão do trocadilho) um texto
cristão vai me ajudar a entender os antigos povos germânicos?
A reposta é simples, na tentativa de cristianizar os pagãos os catequizadores acabaram por fim criando uma obra que paganiza o cristianismo, e de certa forma nos deixaram ferramentas valiosas que nos ajudam a entender como povos tão distantes de nós no tempo se comportavam em aspectos espirituais e na vida cotidiana. (deixando claro que não havia uma divisão entre o que era religião e vida cotidiana, isso foi introduzido pelos cristãos)
Com isso dito, fica aqui o aviso de que
vocês verão neste textos algumas citações de personagens bíblicos como exemplos
para conceitos pagãos, pois estão presentes na Heliand justamente com esta finalidade.
Voltando
ao foco do estudo, é através dos paralelos traçados na Heliand que conseguimos entender
parcialmente as concepções da espiritualidade saxã, notem que usei a palavra
“parcialmente”, e isso nos leva a outra questão, as traduções...
O ponto crucial para plena compreensão do
tema sobre a concepção da alma dos antigos germânicos é que temos no mínimo 4
termos que podem ser traduzidos para a palavra “Alma” em nosso idioma e
todos eles são distintos, ou seja, ao traduzir acabamos simplificando demais
termos que por fim se esvaziam de seus significados.
Para entendimento das questões a seguir,
convido o leitor a se despedir de todos os conceitos previamente adquiridos
sobre o tema pois, para entender a complexidade da alma na visão germânica você
provavelmente vai ter de se desapegar de conceitos oriundos de outras culturas.
Aspectos da Alma segundo os antigos saxões
O complexo da alma sob o ponto de vista dos
antigos germânicos segue uma logica pluralista, ou seja, vários elementos
distintos compõem o indivíduo, diferente da logica cartesiana das religiões
Abraâmicas onde temos o fluxo: corpo,
mente e espírito.
Neste artigo iremos contemplar os principais estágios do complexo da alma dos antigos saxões, e veremos termos como: Ferah, Seola, Gêst, Hugi e Môd.
( todos em saxão antigo )
Ferah
Em outras palavras é essa força vital que une a
todos os seres humanos, ou seja, enquanto nossa Ferah estiver intacta, os
demais aspectos de nossa alma estarão protegidos da morte, como veremos em um
trecho da Heliand a seguir, apenas quando nossa Ferah (força vital) se esvai é nossa
alma pode então iniciar sua viagem no pós vida.
Neste trecho vemos a adaptação da Heliand onde nos deparamos com a morte de Lázaro (personagem bíblico
assim como Abraão), e podemos observar a conexão entre Ferah (força vital) e
Seola (um dos elementos de alma na qual iremos nos aprofundar muito em breve). O autor sugere que diferentemente de Seola, que transcende o plano físico,
Ferah não possui nenhuma ligação com o pós vida, se encerrando com a morte do
hospedeiro.
Em
resumo: Ferah
é a força vital que nos mantem vivos, Ferah não é imortal e tampouco tem alguma
ligação com o pós vida.
Seola
Conhecida pelos linguistas como uma das
origens da palavra Soul em inglês moderno, Seola é o elemento que
mais se assemelha ao conceito de alma que nós conhecemos. Todas as fontes a
apontam como sendo algo que habita no peito do indivíduo, é invisível aos olhos
humanos, podendo ser vista apenas no pós vida e sendo protegida pela força vital como
vimos anteriormente.
Os textos encontrados na Heliand sugerem que:
Seola é imortal, não pode ser afetada por mãos humanas, pode ser corrompida por
transgressões e é comandada apenas pelas divindades.
Segundo
o Ph.D. em Linguística pela universidade da California Berkeley Dr. Scott T.
Shell (2021):
“
A palavra para se referir a alma (seola) existe em todas as línguas germânicas(...)toda
via, sua origem não era totalmente relacionada ao transcendental, mas algo
relacionado ao mar, rios ou corpos d’agua (...) como a raiz proto-germânica de
Seola é SAIWALO, e esta relacionada a SAIWAZ que significa “Mar”, assim vemos a
conexão entre a alma e o Mar. Esta afirmação é um pouco controversa, mas ainda acredito
que esta seja a conexão mais plausível e atualizada que temos”
A partir desta teoria levantada pelo Ph.D.
Scott T. Shell, cito uma passagem da Heliand que comprova em miúdos a hipótese
da ligação entre: alma e água:
Outro
fato interessante relacionando a água a alma (Seola) é a de que tanto os ritos de preparação do recém-nascido
quanto as de preparação para o enterro envolviam banhar os indivíduos com água,
pois só assim eles estariam prontos para receber a alma (seola) e fazê-la partir deste
plano como vemos no texto a seguir:
Ao
nascer:
“A criança é colocada no colo do pai e é abençoada
com água, a seguir a criança recebe um nome e um presente. A água é
vista como o elemento da vida;
e
só o contato com a água é que dá à criança a vida real, a vida na comunidade.(...)” Hasenfratz (1992:64)
Ao
morrer:
(...)
é nesses rituais que os estudiosos identificaram a relação que existia entre os
vivos e os mortos na cultura germânica.(...) A lavagem do corpo e o contato com a
água preparam os mortos para a "vida pós-mortal". (Hasenfratz
1986:26)
Com estas informações podemos concluir que:
Seola é um elemento energético transcendental, controlado apenas pelas
divindades, imortal e que a recebemos ao nascer.
(Por conta destas
características que a palavra Seola deu origem ao termo em inglês “soul”, pois
é a que mais se aproxima da configuração imortal encontrada no cristianismo).
Gêst
Como o próprio nome sugere, a palavra em
saxão antigo GÊST é entre outras, a raiz das palavras Ghost em inglês e Geist
em Alemão, e por mais que muitas vezes possamos ver esta palavra sendo
utilizada para se referir ao espírito, seu significado é um pouco mais
profundo.
Gêst é uma porção do espírito humano, está
localizada na altura do peito e está suscetível as ações humanas e ao
movimento, podendo ser utilizada e manipulada em aplicações mágicas e em viagens
fora do corpo.
Como veremos a seguir em um trecho do livro:
The Semiotics of Fate, de Prisca Augustyn:
“(...) O espírito pode deixar o corpo e
influenciar os outros, particularmente durante o sono, e assombra outros com
pesadelos ou manipula sua consciência. Esse espírito (gêst) porém, não tem nada a ver a noção cristã da
alma, mas sim um segundo eu dessa pessoa (...). Grandes heróis podem
enviar seu espírito para lutar contra seus inimigos na aparência de um animal,
por exemplo, como um urso ou lobo(...)”
Como acabamos de ver, Gêst é uma parte do espírito
humano que, além de ser imortal e estar a mercê das ações do indivíduo, pode se movimentar dentro do nosso mundo (midgard) antes mesmo que indivíduo venha a falecer; A
partir desta sugestão fica mais claro a relação deste termo com seus primos
atuais (Ghost e Geist) que respectivamente significam Fantasma.
Hugi:
Com 188 citações na Heliand, Hugi é tido
como o termo mais frequente para se referir ao “ Eu interior “ do indivíduo,
tendo cognatos em todos os idiomas germânicos como em Nórdico antigo: Hugr e em inglês antigo: Hyge.
Hugi está sujeito às emoções humanas e é a
interpretação consciente da realidade a nossa volta (Eggers 1973:282), podendo ser traduzida como:
Mente, pensamento e a consciência, pois é com esta parte do ser que o indivíduo
sente, absorve e interpreta o que o observa em sua volta
Hugi frequentemente tem sua localização
apontada para o peito do indivíduo, muito diferente do que nossa mente
ocidental contemporânea concebe como estando localizada em nosso cérebro. Esta
localização no centro do peito, próximo ao coração pode ser atestada a partir
de frases encontradas na Heliand como:
Môd
Assim como Hugi, Môd está localizado
próximo ao coração do indivíduo, podendo ser traduzido e interpretado como: disposição,
estado de espírito, coragem e humor; Môd inclusive é a raiz das palavras: Mut
em Alemão que significa: Coragem e Mood em Inglês que significa: Humor.
Môd é a ação intencional, a inspiração e
a individualidade do ser humano que o dirige em direção às atitudes, podemos
encontrar evidências na Heliand como na palavra: Môdgithaht (Pensamento do humor / estado
de espírito) que nos direciona para a concepção desde elemento como algo que
possui seu próprio pensamento, sua própria vontade e o que impulsiona o
individuo a fim de ir atrás dos seus feitos e ambições.
Por fim, espero que este breve texto seja
útil para auxiliá-los nesta jornada de descoberta sobre a concepção espiritual da
alma deixada para nós por nossos ancestrais, é curioso notar que todas elas
estão localizadas em nosso peito, o que além de ser curioso por nos dar uma
localização física de algo metafisico também nos aponta para a relação da
importância vital destes elementos com os nossos órgãos vitais por assim dizer.
Somos o que somos, o resultado do esforço e dedicação de nossos ancestrais, vivendo por nós vivemos por eles !
Referencias bibliográficas
Augustyn, Prisca. 1996. The Semiotics of Fate, Death, and the Soul in Germanic Culture: The Christianization of Old Saxon
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