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Dísir: Do Sagrado ao Profano. Uma breve história sobre as ancestrais femininas


Dentro das tradições nórdicas e germânicas temos muitas citações a divindades femininas conhecidas como Dísir, as ancestrais femininas, as quais de certa forma sempre estão relacionadas a fertilidade e proteção. Essa divindades são ora ligadas a Freyja, que é conhecida como Vanadis (Dís dos Vanes), ora a Skadi, conhecida como Ondurdís (Dís dos Skis), mas muitas dessas informações são superficiais deixando esses seres com um papel secundário ou simplesmente incompleto. Utilizando-se deste texto, buscamos esclarecer dúvidas e resgatar seu culto e significado.

Atestações:

A palavra Dís deriva ou é cognata do inglês antigo e do alto alemão idis/itis e suas citações são encontradas nos encantamentos de Merseburg.

Eiris sazun idisi

sazun hera duoder.

suma hapt heptidun,

suma heri lezidun,

suma clubodun

umbi cuoniouuidi:

insprinc haptbandun,

inuar uigandun.


Uma vez que as Idisi pousaram aqui,

resolveram aqui e lá.

Algumas prender grilhões,

Algumas obstruir os grupos na guerra,

Algumas afrouxar os vínculos

dos bravos:

Saltem por adiante dos grilhões,

escapem dos grilhões.



Em De Temporum Ratione, Beda menciona uma festividade entre os anglos-saxões, de caráter privado, chamada Modranect, que acontecia durante o inverno, onde sacrifícios eram feitos em honra as Dísir. Já em Víga-Glúm Saga são mencionados sacrifícios que eram feitos durante as noites de inverno para as Dísir. Em Hervarar Saga ok Heidreks, é-nos relatado o rapto da princesa Alfhild por Starkadr, em que nos é oferecido algumas informações sobre o Disablot. Uma cerimônia é realizada na casa de um nobre, presidida por uma mulher, e um sacrifício de sangue é realizado – provavelmente sendo sangue animal –, para que as Dísir auxiliem, permitindo a Thor ajudar no resgate da princesa.

Ainda dentro de muitas fontes nórdicas, podemos encontrar uma ligação das Dísir com o fim da vida, e até com aspectos terríveis como mortes e ataques violentos. Isto fica claro nas últimas estrofes de Grímnismál, as quais Wodan revela a Greirrodr o seguinte: “Eu sei que tua vida se encerra, coléricas são as Dísir”. Em Reginsmál, Sigurdr é aconselhado: “Dissimuladas são as Dísir, permanecem em ambos os teus lados, querem te ver machucado”. Em Hamdismal, Hamdir justifica que matou o seu meio-irmão por ter sido induzido pelas Dísir.

No Atlamál, Glaumvör declara seu sonho perturbador para o marido:

“Eu sonhei com mulheres mortas,
Vinham a noite para cá,
Não estavam mal equipadas, queriam te levar,
Convidaram você de imediato para seus acentos,
Eu declaro que nada virá dessas Dísir para você.”


As Dísir ainda apresentam ligações com os mortos em batalha e algumas semelhanças com as valquírias. Em versos do Darradarljód, é dito que elas traçam os destinos dos homens em teares de entranhas; outra evidência da ligação com a morte e destino dos humanos é dada por Tácito que cita que uma das batalhas entre Germanicus e Hermann ocorreu em um lugar chamado Idistavisto, sendo Idis o singular de Dísir. Em Thidranda Tháttr ok Thórhalls, um conto que ocorre na Islândia, os moradores de uma vila são alertados para não abrirem as portas durante a noite após um sacrifício. Porém um dos moradores, acreditando ser o seu pai, acaba abrindo as portas da sua casa, e é atacado por mulheres vestidas de negro, que acabam sendo tardiamente impedidas por mulheres vestido de branco. Alguns acreditam que esse conto nos mostra como foi a transição do paganismo para o cristianismo, alegando que os espirito vestidos de negro representavam as Dísir, que ficaram furiosas por razão do sacrifício não ter sido dirigido a elas, sendo os espíritos brancos possíveis anjos representando a nova religião os salvando.

Dentro dessas fontes, podemos ver a ambiguidade desses seres, que ora estão nos ajudando, ora estão contra nós; porém muitas vezes, devido às semelhanças, dúvidas surgem: o que são de fato as Dísir? Seriam elfos? Valquírias ? Nornas? Fylgja? Vamos compreender melhor esse ser e seu papel dentro da crença germânica continental.


As Mulheres de Branco:

Dentro do folclore europeu, e posteriormente mundial, uma lenda se espalhou: as histórias das mulheres de branco.

As Weisse Frauen, dentro do folclore alemão, seriam muito semelhantes aos Ljósalfar do folclore islandês: são vistas ao meio dia, aparecem sob o sol escovando seus longos cabelos, banhando-se em riachos, assombrando castelos, guardando tesouros, e podem muitas vezes aparecer a uma pessoa, pedindo auxílio para quebrar uma maldição.

Nos Alpes, encontramos as lendas das Salige Fräulein (mulheres salige, mulheres salk, mulheres selvagens ou brancas), também chamadas de mulheres abençoadas, sendo retratadas como tímidas, porém muito prestativas e que vivem em cavernas rochosas e glaciares ou às margens do Drau. Elas dão bons conselhos àqueles que ajudam camponeses e pessoas desajeitadas, e odeiam barulho. Uma das lendas conta do dia em que um jovem camponês acabou fazendo muito barulho perto delas, e acabou sendo atacado. As mulheres brancas dançaram em torno dele, o levaram para um local, onde o amarraram e levaram sua alma, deixando seu corpo morto. Outra lenda conta que certa vez os camponeses fizeram muito barulho na região, e isso enfureceu as Salige, que partiram e não foram mais vistas desde então. Em outra lenda, moradores contam que em um tempo de muita escassez e fome, as Salige trouxeram aos moradores trigo sarraceno, que nem era conhecido pelos moradores.

Jacob Grimm acredita que elas estão ligadas a Holda, pois sua origem está ligada diretamente ao passado pré-cristão, sendo Holda também ligada a Perchta ou Berchta, conhecidas como deusas brancas, da terra, ligadas a rios e fontes de água.

As Dame Blanche, do folclore francês, possuem relatos em Lorraine e na Normandia. Estes falam de mulheres de branco que aparecem nos Pirineus, onde são vistas em cavernas em Bayeux, na rua Quentin, Normandia. As dame blanche, se manifestam em pontes, onde pedem ajuda para atravessar ou para que a pessoa dance com elas, agradecendo caso auxiliada ou jogando a pessoa no rio caso rejeitadas. Em Falaise, na Pont d’Angeot, lendas contam da aparição de uma mulher de branco que exige que as pessoas se ajoelhem diante dela, caso não o façam, ela envia corujas, gatos, Lutins (uma espécie de duende) e outros seres para perseguir a pessoa.

Já MacCulloch acredita que elas sejam uma recaracterização das antigas deusas do período pré-cristão. Seus nomes podem ser derivados das antigas deusas guardiãs conhecidas como Matres, o que remete especificamente às inscrições, “as Dominae” que cuidavam da casa segundo o folclore medieval.

As Witte Wieven, do folclore holandês, certamente são as mais esclarecedoras. Conhecidas também como Wittenwijven, Juffers ou Joffers - erroneamente conhecidas como mulheres brancas, sendo a forma correta da tradução mulheres sábias. Em vida seriam mulheres que exerciam a função de parteiras, curandeiras e videntes, e possuíam grande status dentro da sociedade. Quando morriam, recebiam cerimônias especiais nos montes tumulares. Segundo as lendas, depois de mortas, elas passariam a viver na terra como elfos, para ajudar ou atrapalhar aqueles que as encontram e costumam residir em cemitérios ou locais sagrados como montes tumulares. Podem ser vistas na névoa que cobre as colinas, e aceitam oferendas em troca de ajuda.

Jacob Grimm menciona no Deutsch Mythologie (1835): “os povos da Frísia, Drenthe e dos Países Baixos têm muito a dizer sobre seus Wijven ou Juffers em colinas e cavernas, embora aqui eles se misturem a personagens élficos.”

Na literatura medieval elas são descritas como jardins cheios de névoa ou nevoeiros, bruxas fantasmas, malignas, e que devem ser evitadas. Contudo, na vila de Barchen, fica o wittewijvenkuil – o poço das mulheres sábias –, que fica entre duas colinas, onde as lendas contam que vivem três mulheres sábias. Já perto da vila de Fefde, fica a wittewienbult, a colina das mulheres sábias, onde lendas contam que elas podem ser vistas dançando na véspera de natal, mostrando-nos que mesmo com a proibição da igreja, a crença nesses seres persistiu até os dias de hoje.

Com tantas semelhanças entre todos esses folclores, tudo indica a existência de uma raiz principal, e é aqui que chegamos. Muitos pesquisadores chegaram à conclusão de que todos esses seres, Dísir, Nornas e Valquírias, são conectados a uma raiz germânica, Através de muitas fontes do século XIII, é possível comprovar a existência de deusas tríplices, algo muito comum e frequente na Europa, como as Moiras, as Parcas, Morrigan, as Charites, o Horae, as Nornas. Sendo assim, não é complicado chegar à raiz de toda essa tradição, o culto às Matronae.


As Matronaes:

O culto às Matres ou Matronaes, divindades femininas, veneradas por todo noroeste da Europa, espalhou-se por todo território que continha presença romana, do século I ao século V. Muitos altares foram encontrados por toda essa extensão do continente sendo metade deles com inscrições Celtas e a outra metade contendo inscrições Germânicas.

Muitos altares votivos apresentavam a figura de três figuras femininas, sendo que uma delas sempre carregava uma cesta. Muitas destas imagens possuem uma figura central com longos cabelos soltos, usando uma faixa na cabeça enquanto as outras com um vestido na cabeça. Além disso, aparecem representações de cobras, crianças e fraldas. Algumas contêm representações de oferendas, como incenso, frutas e porcos; nunca são encontradas sozinhas, sempre em grupos, ao redor de edifícios, templos e locais sagrados. Mais de 1100 estatuas com essas características já foram encontradas, revelando a importância desse culto para o povo da época.

Rudolf Simek comenta que as representações nas estátuas podem representar algumas funções, sendo o cabelo solto uma possível indicação de virgindade, os enfeites na cabeça uma representação do casamento, as serpentes uma possível ligação com a morte ou o submundo, e as crianças e fraldas uma possível função de proteção do lar, da família ou das parteiras.

Como podemos notar, de acordo com todas as fontes, folclóricas e históricas, temos grandes semelhanças entre esses seres. Todos estão ligados a cavernas e locais com água, podem ajudar e atrapalhar, também aceitam oferendas. As maiores e melhores pistas deste culto aos ancestrais vêm do folclore Holandês. Entendemos que as Dísir, possivelmente, tem a mesma origem: mulheres sábias, curandeiras, parteiras: mulheres que cuidavam dos moradores de uma vila, respeitadas e temidas, que depois de partirem, continuavam seu trabalho. Muitas dessas características persistem em divindades tríplices até os dias de hoje, sempre ligadas ao nascimento e a morte, como Hekate, deusa grega dos caminhos e dos partos, que nos dias atuais acabou recebendo o status de deusa das bruxas, título dado a divindade pela igreja, em uma tentativa de demonizar e erradicar o culto que se perpetuou por toda a Europa, alterando a função original de diversas divindades.

Sabemos que em séculos passados, a medicina era extremamente precária, e a cura dependia de ervas, sortilégios e encantamentos, além de ser exercida por curandeiras e curandeiros de diversos povos, e a isso era atribuída uma certa magia. As Dísir, para os germânicos, eram o espírito das curandeiras da vila, não as ancestrais específicas da família. Elas eram as parteiras e videntes, que mesmo depois de partir continuavam a prestar seus serviços àqueles que as procuravam, em troca de oferendas e favores. As diversas lendas que se mantêm até os dias de hoje em diversos lugares, contam que algumas pessoas solicitam favores às Dísir e são atendidos mediante a pagamentos, e muitas pessoas são punidas por não as respeitarem.

Seus avistamentos são geralmente em fontes de água e cavernas, locais que eram sagrados para os antigos. Conhecemos diversos relatos de cultos em fluxos de água, cavernas, e principalmente colinas, já que muitas dessas colinas eram montes mortuários - conhecidos como colinas dos elfos. Sabendo que os elfos são espíritos ancestrais, podemos claramente chegar à percepção de que as Dísir são ancestrais femininas de curandeiras de determinado povo ou região que se tornam elfos, os quais nada mais seriam que espíritos de humanos mortos que ainda vivem entre nós.

Tudo que temos sobre seu culto é o que pode ser encontrado nas pedras votivas e em alguns relatos da Escandinávia. Sabemos que existiam algumas festividades onde as Dísir eram honradas, e que um sacrifício era feito a elas; era um rito realizado na casa de um nobre, normalmente o líder da cidade, e presidido por uma mulher; sacrifícios, cestos de frutas, incensos de ervas e porcos eram oferecidos, como podemos ver nas representações nos altares.


Conclusão:


As Dísir, com o passar dos séculos, foram cada vez mais demonizadas pelos cristãos, se tornando assombrações, bruxas espectrais, sinais de mal agouro, seres a serem evitados. Com isso, foram surgindo diversas lendas de assombrações, de mulheres de branco que assombram florestas, casas, cemitérios e atacam as pessoas, chegando até nossos dias na forma de contos e lendas de fantasmas de mulheres que pedem carona, espíritos que pedem ajuda. Tudo isso são frutos de séculos de distorção e demonização de algo que era tão importante para os antigos pagãos. Se nossos ancestrais fizeram sua caminhada até aqui, foi com muitas vezes o auxílio de curandeiras, parteiras, mulheres sábias, feiticeiras, bruxas. As Dísir não são deusas, mas mulheres que dispuseram sua vida aos outros.

De grandes mulheres sábias, foram reduzidas a assombrações e demônios na névoa; perseguidas e esquecidas, nossas ancestrais, talvez não de nosso próprio sangue, mas do nosso Innangard, do nosso povo, as Dísir, clamam pelo fim da mais terrível maldição: a ignorância. Agora com o florescer de um novo tempo, sem a perseguição religiosa implacável de uma inquisição, mais uma vez esses espíritos sagrados retornam a nós para auxiliar, e punir quando desrespeitamos a Frith.


Referências:
Johnni Langer, Dicionário de mitologia nórdica.
Keightley 1870.
JA MacCulloch, A religião antiga dos celtas 1911.
Hans Haid, Mythen der Alpen.
Jacob Grimm, Deutsch Mythologie 1835.
Reginheim, História pagã do Achterhoek 2002.
Reginheim, Witte Wieven 2007.
Museu Estatal de Etnologia, Munique 2001, ISBN 3-9807561-2-2 (catálogo da exposição de mesmo nome), pp. 142-146.

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