Pular para o conteúdo principal

A Criação da Humanidade: O Völuspa é a única descrição deste evento?



De onde os humanos vieram segundo a mitologia Germânica? As Eddas nos provê com uma história de origem:
“Então de uma multidão, três surgiram,
Da casa dos deuses, os poderosos e graciosos,
Dois sem destino na terra em que foram encontrados,
Ask e Embla, vazios de poder.
Não tinham alma, não tinham sentidos,
Nem calor nem movimento, nem boa cor,
Odin deu a alma, Hönir deu sentidos,
Lothur deu o calor, e a boa cor.”

— Völuspa, Edda Poética

Será que era assim que os antigos povos pensavam sobre a criação da humanidade? Existem, entretanto, muitos problemas com esse texto do Völuspa. Primeiro de tudo, o texto foi escrito na segunda metade do século XIII, apesar de que acredita-se que alguns poemas são de 800AD-1000AD. Isso é bem avançado na era medieval e séculos após a era das tribos Gêrmanicas clássicas. É improvável que uma tradição oral se mantenha intocada por tantos anos. O segundo grande problema que nós temos é que a Edda Poética foi escrita por um cristão, e elementos cristãos são identificáveis ali.

Até mesmo neste pequeno pedaço da Völuspa fica claro a influência cristã. Ask e Embla são bem similares às figuras bíblicas Adão e Eva, os primeiros dois humanos. O núcleo da história é, provavelmente, pagão em origem, mas é bastante possível que o escritor adicionou elementos cristãos para que a conversão da população da Islândia fosse mais fácil.

Seria menos chocante para um pagão se sua história de criação fosse similar ao da igreja. Não apenas os nomes são similares aos cristãos, é também similar ao nome dos dois primeiros humanos na mitologia Zoroástrica antiga; Meshia e Meshiane, que também foram criados a partir de árvores, como no Völuspa. Zoroatrismo foi uma grande fonte de inspiração para as religiões abraâmicas, especialmente para o Islã, então não é estranho os nomes serem parecidos.

Então se é verdade que a história de Odin dando vida a Aska e Embla é apenas uma mera versão cristianizada da história de criação germânica, o que os antigos Germânicos acreditavam antes do cristianismo sequer existir?

Para isso, nós podemos verificar o escritor Romano, Tacitus. Felizmente, Tacitus mencionou como a humanidade, mais especificamente o povo Germânico, foi criado de acordo com o povo antigo. O núcleo por trás desta história é muito mais semelhante à filosofia do povo Germânico antigo, que constantemente tentava se conectar diretamente com os deuses.

“Em suas canções antigas, as quais são suas únicas gravações ou anais, eles celebram o deus Tuisto, nascido da terra, e seu filho Mannus, como os pais e fundadores de sua raça. Para Mannus, eles dedicam três filhos, dos nomes quais as pessoas que vivem próximas ao oceano são chamadas Ingaevones, aqueles habitando as partes centrais Herminones, e o resto, Istaevones.

Alguns, entretanto, tomando licença de antiguidade, afirmam que existiam mais descendentes de deus, os qquais são derivados para os Marsi, Gambrivii, Suevi e Vandali. E que esses são os nomes verdadeiros e originais. Que a Germânia, todavia, eles afirmam que é uma adição moderna para qual as pessoas que primeiro cruzaram o Reno, e expulsaram os Gaus, e que agora s~~ao chamados de Tungri, foram então chamados de Germânicos, e que tal nome era de uma tribo particular, e não de um povo inteiro, gradulmente prevaleceu até que o título de Germânicos, primeiro assumido pelos vitoriosos para causar terror, foi adotado mais tarde pela nação em geral.

Eles têm, da mesma forma, a tradição de um Hércules (Donar) no seu país, o qual eles cantam os feitos antes de todos os outros heróis, enquanto eles avançam para a batalha.

— Tacitus, Germania

Como podemos ver, a história de criação, mencionada por Tacitus, é muito diferente da descrita na Edda Poética. Tacitus menciona que o povo Germânico dedicava suas canções para um deus chamado Tuisto, que era muito provavelmente o deus Tiwaz/Tyr. Tuisto nasceu da terra e teve um filho chamado Mannus, que também é o nome de uma runa que simboliza a humanidade. Mannus por sua vez, teve três filhos, cujo os nomes foram eventualmente usados para representar três regiões Germânicas diferentes: Ingaevones, Herminones e os Istaevones. De acordo com essa história, o próprio povo Germânico possui uma origem divina e o primeiríssimo humano não é Ask ou Embla, mas Mannus.

Alguns irão perceber que Odin/Wodan não é sequer mencionado. Novamente, esse pequeno relato de Tacitus parece concordar com a teoria de que o povo Germânico antigo via Tiwaz/Tuisto/Tyr como seu deus chefe antes de Wodan tomar seu lugar. Quando essa troca aconteceu não é certo. Pode ter ocorrido por volta dos anos 300, quando o mundo Germânico estava mudando rapidamente, tribos tornavam-se reinos lentamente, o império Romana começava a ruir e as tribos invasoras causavam caos por toda a Germânia. Talvez os reis e chefes de suas tribos buscavam um deus mais sinistro para se apoiar e acharam Wodan/Odin. (Novamente, essa é apenas minha teoria e pensamentos em relação a isso. A realidade pode ser muito diferente, não temos como saber.

A história de Tacitus está muito mais de acordo com como o povo Germânico antigo observava seus deuses. Os Germânicos tentavam frequentemente se conectar diretamente com os deuses através de histórias; Beowulf e a Oera Linda são exemplos claros disso. É dito que o povo inglês descendem de Hengest e Horsa, uma representação mais tardia dos deuses gêmeos Alcis, enquanto pensa-se que os Frísios descendem diretamente de Freyja. Alguns nomes tribais também sugerem uma conexão direta com os deuses, então esta pequena história descrita por Tacitus pode ser uma visão real de como os povos Germânicos antigos pensavam sobre suas origens.

Ambos a Edda Poética e a Germania de Tacitus possuem problemas. A Germania foi escrita por Tacitus numa tentativa de mostrar à sociedade Romana o quão “bárbaros” eram estas tribos longes de Roma, e como “sofisticada” Roma era. Tacitus tinha, entretanto, nenhuma motivação para mudar a história de origem Germânica, então esta parte da Germania pode de fato ter sido baseada em tradições orais Germânicas reais. A história de Tacitus também possui similaridades com elementos comuns frequentemente associados com o povo Proto-Indo-Europeu.

A Edda Poética, no entanto, foi escrita por um cristão enquanto o mundo escandinavo estava mudando rapidamente de um último bastião da fé Germânica para nações tementes a deus. O escritor da Edda Poética tinha, portanto, motivações políticas para ajustar a história de criação para que se alinhasse melhor com a história cristã. Não há tais elementos na curta descrição de Tacitus.

Então, o que você acha? Deveríamos pensar mais sobre a história descrita por Tacitus? Eu sinto que essa pequena passagem é ignorada por muitos pagãos que costumam basear-se apenas nas Eddas para informações sobre os deuses. O quanto que nós vemos na Völuspa foi poluída pelo cristianismo e quais partes podem ser de contos pagãos passados de geração em geração? Deveríamos abandonar a ideia de Ask e Embla?

Texto original: Melissa Ligteneigen

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Lista de Leitura - Runas

Nos tempos modernos o assunto Paganismo Germânico e Runas é indissociável. Em um paradigma reconstrucionista, conforme nos mostram as fontes e os achados arqueológicos, reconhecemos que as runas não eram usadas para a divinação e, muito provavelmente, para magia durante o período onde a antiga religião pagã era praticada pelos povos germânicos. Existia uma dúvida quanto a questão oracular devido ao fato de que o historiador romano Públio Cornélio Tácito citava o uso de varetas com símbolos para uso divinatório, entretanto ( conforme artigo já divulgado pelo Germania Institut ) essas varetas já foram encontradas e elas não possuíam runas entalhadas. Apesar das questões supracitadas, entendemos que o uso moderno de runas para magia e divinação é um tema agregador a nossa cena e, portanto, não deve ser desconsiderado. Somado a isso temos os registros de que os povos germânicos gostavam e utilizavam com frequência consultas oraculares, ainda que não usando runas, conforme consta no trabalh...

Como Fazer Um Blot Solitário

Tradução e adaptação do texto de Robert Saas pelo professor Leonardo Hermes: https://www.aldsidu.com/post/how-to-do-solitary-ritual   Uma das maiores dificuldades daqueles que buscam seguir as tradições dos germânicos antigos é como proceder com algum ritual para honrar os deuses ou antepassados. Com isto em mente estamos trazendo um guia de como fazer um Blot solitário.  Trouxemos o passo-a-passo para que você possa fazer um ritual historicamente fidedigno e com significado.  Muitos grupos, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, utilizam sangue nos seus Blots, já que esta é a origem da palavra “blood”, sangue em inglês. Contudo, entendemos que isto pode ser chocante ou um tabu muito grande para a maioria das pessoas. Lembre-se que quando se utiliza sangue, normalmente o animal é abatido e depois assado. Qualquer um que goste de churrasco e tenha ressalvas em utilizar sangue em um Blot precisa rever a sua visão do que é um Blot.  Contudo, sangue não é a única...

O Calendário de Feriados dos Germânicos Antigos

Texto traduzido e adaptado pelo professor Leonardo Hermes. Fonte: Robert Saas, https://www.aldsidu.com/post/the-historical-heathen-holidays-and-calendar  Esqueça a Roda do Ano ou Samhaim ou Yule no Solstício de Inverno. Muitas pessoas que buscam seguir o Germanismo acabam incorrendo no erro de seguir datas de feriados sem nenhum embasamento em nossas fontes, que são achados arqueológicos, as Sagas, as Eddas, textos em latim do fim da antiguidade e início da Idade Média como as Leges Barbarorum. Graças a pesquisadores como Dr. Andreas Nordberg e Andreas E. Zautner - que nos trazem novas perspectivas sobre esta questão – podemos ter um calendário mais autêntico.  Antes de mais nada, é preciso entender que a visão que temos sobre o tempo hoje é completamente diferente daquela dos germânicos antigos; para eles o ano começava com o inverno (que para nós hoje seria o meio do outono) e só tinha duas estações: inverno e verão; ambas estações começavam em uma lua cheia; o dia se inicia...